sábado, 3 de janeiro de 2015

Magalis

E naqueles tempos, em dias de calor, com aquele mormaço de que só são dignas Cezídia, Macondo, Teresina e Cuiabá, nos sentávamos à calçada, à beira da calçada dos fundos, já quintal, ali, entre meio passo a passo e meio da porta da cozinha, onde o calor do forno a dourar quitandas dava ao inferno um estatus de paradisíaco oásis refrigerado. Lá fora, tentando captar a mais leve brisa, sentíamos o cheiro das roscas, biscoitos, bolos, o que fosse a quitanda do dia...

E o alarido que fazíamos com as tias e primos fazia calar periquitos e enrubescia maritacas em bando a brincar em dias de chuva. Enquanto eram dadas para uma nova rodada de pif-paf, um jogo antigo como dizia Rosângela, as cartas se distribuíam.

Minha mãe, que não jogava, desaparecia para olhar a fornada e, de repente, surgia à porta com uma enorme e redonda, reluzente e apetitosa melancia. Partia-a ali mesmo, sobre uma tábua de carne que pousava em um dos bancos, cadeira, ou mesmo à beira da calçada, nossos olhos atentos à lâmina de aço que brilhava e terminava em um cabo branco, contrastando com as mãos morenas e firmes, de unhas grossas tingidas pelo esmalte rosa bem clarinho, que ainda mais empalidecia diante da vermelhidão que o fruto tenro, aquoso, doce e escarlate mostrava a cada fatia separada pelo punho decidido.

Um filete de suco escorria e pingava na terra, pois não seguíamos a moda de cimentar os quintais, e então agradecida a mesma terra logo o sorvia.

Depois de fatiada em tamanhos mais ou menos iguais, os nacos eram oferecidos com prazer e generosidade, a algazarra não sendo interrompida sequer quando a gulodice das dentadas satisfeitas, esganadas, trucidava a polpa que nos matava a sede e refrescava corpo e espírito. Uns só comiam a polpa vermelha, outros, a molecada que queria mostrar o quanto apreciava o regalo, o faziam até a parte branca, numa disputa de quem mais aproveitava e assim muito pouco sobrava às galinhas que por ali esperavam seu quinhão.

Uma tia sempre pegava a faca e fazia bonecos com a casca – pernas, braços, corpo e cabeça... E dalí a pouco logo começava o aperreio vespertino que sempre se impunha depois do sacrifício do fruto vermelho: a vontade de fazer xixi.

Segundo minha mãe, e ali estavam minhas tias que não a deixavam mentir e não perdiam a diversão de nos ver em apuros, o primeiro a fazer xixi o faria por todos os que comeram a melancia, não de uma vez, mas indo de instante a instante, um pouquinho por vez.

Todos ríamos e passávamos a lenda adiante, nos segurando, até que um não aguentasse mais e entrasse para ir ao banheiro. A gargalhada era geral e, vitoriosos por não sermos os primeiros, tirávamos nossa lasquinha de sarro, livres para ir cada qual a seu tempo verter a água.

Era então que começava a escurecer, aquele momento mágico onde os biscoitos e bolos finalmente ficavam prontos. Era a hora de entrar para o banho antes da janta e continuar a ser feliz!


Foto: Djair - Melancia na casa de mamãe, nessas últimas férias, ainda a mesma faca, o mesmo sabor.

14 comentários:

  1. Foi nessas que Proust acabou por escrever seis livros :)
    Grace T. Crawford

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    1. Se tranca num apto em Paris, com paredes revestidas de cortiça, que ce termina rapidim,
      Grace T. Crawford

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  2. Adoro suas histórias fantásticas !!!!! Devaneio por elas !!!!! Obrigado !!! ��

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    1. Obrigado Anônimo. Sempre bom ter esse retorno! Grande Abraço

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  3. Que vontade: da melancia e de escrever.
    Patrícia Carla Santos

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  4. Fico feliz de ter conseguido com o texto suscitar ambas as vontades, é isso que faz valer a pena! Obrigado!

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  5. Olá, Djair!

    Com que destreza você delineou o "perfil" de uma melancia, fruta que, "coitadamente", não faz parte do meu gosto pessoal (olha que eu adoro quase toda fruta que conheço!...).
    Adorei o detalhismo e senti o sabor daqui, e confesso que até me deu vontade de saborear uma, mesmo sem ser minha fruta predileta, como acima mencionei.
    O título não poderia ser melhor - "Magalis" - e foi ele quem me atraiu até o post por ser ela, a Magali (aí, sim!), minha personagem da Turma da Mônica favorita! (Mas não por eu comer demais, viu? rsrs)

    Beijos!!!! :)

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  6. Obrigado Mary!
    Felicíssimo com seu retorno, afinal, se consegui despertar sua vontade para um fruto que não é o seu preferido, isso sim, é um grande feito!
    Beijão!

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  7. Delicia de texto. Há tempos que que não venho aqui. Preciso voltar mais vezes. Abraço.

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  8. Precisa mesmo, estava sentindo sua falta! :)

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  9. E a felicidade se faz assim,em momentos simples de puro encanto e poesia.

    Beijão,Dja!

    Dani.

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