quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Primeira infância

A recordação mais antiga que trago - e talvez já tenha falado disso, pois parece que já contei tudo o que tinha a dizer - possivelmente é a de minha mãe a me comprar lanche numa lanchonete, onde havia um enorme aquário cujos peixes me encantavam. Talvez por isso a partir dos nove, ou dez anos de idade, nunca mais tenha deixado de tê-los, senão por breves hiatos. Mas o texto de hoje não é sobre eles, nem sobre as duas ciganas exóticas que naquele café estavam e que me chamavam atenção com seus muitos colares, brincos e pulseiras, anéis e roupas coloridas, as quais me lembro ser saias enormes, enriquecidas com muito pano e de um vivo cor de abóbora de fazer inveja ao próprio fruto.

A cidade era São Mateus do Sul, no Paraná, e como já enunciado, dela pouco me lembro; o que sei, na maior parte, é o que me contaram... Que dei banho numa galinha, com café, e de garrafa térmica em punho fui surpreendido em plena ablução… Que não gostei de meu tio Antônio, quando lá esteve a nos visitar, vindo de carro, do Maranhão, naquele distante final dos anos 1960, numa época em que o país se fazia com homens e estradas. Pela narrativa, atentei contra sua vida, jogando nele, que estava deitado em uma rede, uma faca de mesa. Numa foto daquele período, ele ostenta uma cabeleira que já não possui há muito tempo e óculos ray-ban a compor sua pinta de galã.

A escola, ou melhor, o jardim de infância era de freiras, e onde as lembranças não alcançam, fica a provar uma outra foto, que provavelmente minha mãe ainda tenha, na qual estou ali e entre tantas crianças me destaco por ser o único de cabeça baixa e mão na testa, num sinal claro de cansaço. Aliás, esse cansaço trago desde aqueles longínquos três anos de idade. O uniforme verde, calções curtos, naquele tempo a nos diferenciar dos púberes, que mais tarde se convencionou chamar de adolescentes. Na ponta da foto, a irmã baixinha, cuja estatura, próxima à nossa, dá a explicação à alcunha. Segundo os relatos paternos, eu a chamava de irmã “bafinha”, por não pronunciar corretamente o “x”. Vai ver, desde aí, já teria problemas com o efe, vai saber, mas chegaremos a isso no primário.

As reminiscências escasseiam e passam pelos dois coleguinhas vizinhos, da casa ao lado, com quem muito brincava, e em dias de chuva a diversão era nos escondermo-nos de nossas mães. Dentro de casa, e dos risíveis esconderijos, ficávamos a gritar a nossas mães, repetido a frase provocadora e mentirosa: “Tô no barro, tô no barro!!!” Lembro da enorme palmeira e seus coquinhos-catarro no quintal lateral, do sobrado enorme onde moramos, antigo prédio dos correios, e que quando dali fomos embora, meu pai passou a procuração de venda a um amigo a quem nunca mais viu, num dos muitos golpes que tomou pela vida. Ali, ele também comprou as ações do Bradesco, - que me valeriam, uma década depois, por alguns anos, as camisetas brancas com o nome grafado em vermelho - fruto da amizade com o vizinho gerente, nosso vizinho com cuja filha eu também brincava. Da casa desses só me lembro de uma enorme escada.

Era eu então uma criança muito quieta; ainda trago na testa a cicatriz de quando derrubei por cima de mim a cristaleira de minha mãe. Seu maior medo era que eu caísse da escada, onde segundo ela conta, do alto desta, uma vez gritei que a vó, há pouco falecida, ali estava e teria me dito algo que ela, imperdoavelmente, não se recorda. O galinheiro no fundo do quintal é a única lembrança que tenho de animais em casa; não devíamos ter cachorro já que Feijão, o cachorro marrom de quem eu tomava a comida meses antes, ficara no Rio de Janeiro, em Resende, quando nos transferimos de lá. Mas essa história já está registrada no blog em outro causo.

Nessa mudança, meu pai nos levou no Fusca, e na estrada, em limites de velocidade da época, não teve tempo de frear e atropelou um cachorro que surgiu repentinamente na estrada. Ainda segundo minha mãe, só houve o tempo de dizer: "Segura o menino que vai bater." Com um braço me abraçou forte e com o outro segurou o apoio de mão que existia nos fuscas, conhecido  popularmente (ao menos o foi nas décadas seguintes) como: "puta-que-o-pariu". Sim, naqueles tempos criança também viajava livremente no colo, e no banco da frente. O estrago no carro foi grande devido a velocidade a ao impacto. O pobre cão que vagava pela estrada foi-se e ficamos nós. 




Foto: Djair - Uma das tantas estradas percorridas nessa vida.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Santos Sepulcros


“(…) Todas as variedades de cruzes, anjos, bustos, medalhões, colunas, corações, âncoras,
figuras chorando, espadas, flâmulas, brasões, tochas viradas, vasos cobertos com panos funerários,
ampulhetas, corujas, caveiras, poliedros, livros da Vida abertos ou fechados, a foice do Tempo,
inscrições lacônicas ou lancinantes, humildes ou vaidosas, apelos de oraiporele ou porela
– Tudo recobrindo a mesma treva e o mesmo zero.”*

Pedro Nava


Quando, nos dias de finados, visitávamos as sepulturas de meus avós, eu, já desde cedo, era o incumbido de cortar as flores do jardim. Morávamos próximo de uma área já às entradas de uma reserva, à beira do morro onde, se adentrando um pouco, logo iniciaria a reserva dos Pilões. De lá, voltava com margaridas selvagens, amarelas, daquelas que se esparramam como trepadeiras, helicônias variadas, e ramas de manacás, mais difíceis de apanhar pela altura dos galhos… A mais das vezes o grande sucesso, quem o faziam eram as hortênsias do jardim de casa, os antúrios dos vasos de mamãe, que juntados às folhas de samambaias iam repousar e morrer também, elas, nas catacumbas de entes amados.

Chegando ao cemitério, primeiro avistávamos o lindo jazigo em granito, que era do padrinho de meu pai – aliás de sua família, pois aquele já não tinha nada, só as preces e velas que lhe eram acesas. Talvez fosse o mais vistoso dali, ele que tinha sido prefeito, e cuja lenda, por ter sido maçom, quem sabe, era que se transformava em lobisomem. Mas meu pai nunca falou muito dele; afinal, a mania de pobre dar filho a ricos para apadrinhar só distancia afilhados dos padrinhos, até pela quantidade de afilhados que os “remediados” têm. Já da madrinha, que não sei em que sepulcro foi parar, contava ele que era muito magra, alta, branca e feia, e que os irmãos dele o convenceram que seria uma bruxa; assim, todos os confeitos que ela lhe dava iam parar nas mãos de meus tios, já que meu pai morria de medo dela e seus possíveis feitiços e venenos.

A poucas quadras depois, chegávamos à residência oficial de meus avós, onde minha mãe abria os buquês, e em cruzes vivas transformava as flores sobre a cerâmica dos túmulos; acendíamos as velas, rezávamos procurando entrar em sintonia com eles, depois íamos ao cruzeiro rezar por outros parentes…

Quado criança, uma vez, nesse cemitério de Melo Viana, em Coronel Fabriciano, que não tinha muros e sim cerca, e poucas covas transformadas em sepulturas, o que deixava a terra, ali vermelhada, mais presente, para lembrar talvez que a esse pó retornaríamos – nesse cemitério, próximo ao cruzeiro onde fomos render homenagens aos parentes postos em sossego, morrentes em outros sítios, nos deparamos com aquela cena inusitada da vela que lacrimejava sangue. Uma pequena multidão já ao redor, a olhar e a comentar a novidade da pequena vela, comum, que chorava sangue. Pois bem, minha mãe foi lá ver, pegou um raminho, um pequeno galho seco, o que seja, e escarafunchando o pavio do lume, tirou dali os grãos de vermelhão; daquele mesmo que se misturava à cera para dar mais cor ao assoalho, e assim… c'est fini. Acabou-se a farsa, sabe-se lá provocada com que intuito mistificador. Finda a diversão, como o pequeno aglomerado, agora silencioso, que já dispersava, fomos embora dali, rezar noutra freguesia.



* NAVA, Pedro. Balão cativo. São Paulo: Companhia das Letras. 2012 p.70

Foto: Djair – Cemitério Municipal de Floriano – PI