quinta-feira, 28 de março de 2013

Dedico a você, que me lê.



Esta semana, ao compartilhar uma charge que dizia: “como assim? não se ganha livros de Páscoa?”, me voltou a dúvida atroz que sempre tenho quando quero presentear alguém com livro ou disco (CD, DVD, que seja para assim para os mais puristas). A dúvida é: abro e escrevo uma dedicatória, ou mando embrulhar para presente, intacto e com selo de troca?
Eu por mim prefiro ganhá-los com as dedicatórias, mas isso torna-se cada vez mais inusual. Parece que o importante é que o outro possa trocar por aquilo que mais lhe caiba ao gosto. Afinal, muitos que leem, leem apenas o que está na lista da revista classe média, os best (será de besta?) sellers ditados pela modinha - e olhe que conheço um monte de gente assim, que se diz moderna, descolada, alternativa e que compra livros escolhidos pelo catálogo da já citada revista ou porque todos estão lendo. É certo que não é porque você gostou de determinado livro e por isso quer compartilhar aquela prosa (ou poesia), que o outro vai se interessar por ela.
Mas voltemos às dedicatórias, tem coisa mais deliciosa? Lembro-me de várias, em livros que ganhei e que o tempo, as mudanças e as pessoas que os pegaram emprestado, tiraram de mim. Sinto mais pelas dedicatórias que pelos livros, já que estavam devidamente lidos, mas os gosto de manter junto a mim, de compartilhar emprestando a amigos que em comentários dizem: “_Ah, não li, você tem?” E por gostar do que ali está, e assim, acabamos por manter muitos, em detrimento de ações como da Eliana Asche e o grupo da Escola de Sociologia e Política que os espalha por ruas e praças, ofertando a transeuntes, passantes desavisados e pessoas que têm vontade de ler e muitas vezes não têm acesso.
“A queda para o alto”, de Anderson Hezer – codinome de Sandra Mara Herzer, que deu origem ao excelente “VERA”, filme de Sérgio Toledo, ganhei de Marta, em 1985, ano em que namoramos, ano do primeiro Rock in Rio, ano em que morreu Tancredo, ano que em Floriano se ouvia Belchior na Palhoça da tia Chica enquanto tomávamos caipirinha feita pelo Josfran ou pelo Abdias. Pois bem, emprestei o livro a Valdênia e nunca mais o vi. E se não guardo à cabeça a dedicatória feita, guardo a imagem das enormes letras, bem desenhadas  em canetas verde, azul e vermelha.
“Chatô Rei do Brasil” ganhei de Chico, emprestei ao Arivelson Feltrim, e se não se envergonham de não devolver livros, não vou envergonhar-me de dar nome aos bois. Ganhei de Xico, que insistia que seu Chico fosse com “X”. Talvez porque, como colocou a descoberto na edição de domingo último do Estadão, Humberto Werneck, “(...) Chico pode ser tudo isto: bolinha; mico ou macaco doméstico; sujeito fingido ou mentiroso; menstruação; uma dança; comandante de marinha mercante...” Mas enfim, o livro se foi e da dedicatória lembro-me do final, que encerrava a frase do biografado: “Ser prudente é acima de tudo ser medíocre.”
Dúzias de livros, e inclusive a caderneta onde anotava os já lidos, com comentários, notas sobre eles, foram extraviados quando deixei a casa de minha mãe, jogados fora, queimados. Não admira a ignorância de quem se desfaz de livros assim, e com eles as dedicatórias!
Outra que me recordo com carinho é a do livro “O Mandril” de Zulmira Ribeiro Tavares, onde ela colocou na página de rosto, ao dia do lançamento: “Não se importe com a cara feia do mandril, ele está louco pra fazer amizades”, numa referência direta ao desenho da capa.
Quando Zi me deu “Chic-érrimo”,  da Gloria Kalil, colocou na dedicatória: “Pro querido Djairzinho, para que fique mais fresquinho”, em recordação a meu apreço pelo cerimonial em certos casos, frescura que assumo, pois se ofereço um jantar, almoço ou lanche, que a mesa seja bem posta. Além do fato de se comer primeiro com os olhos, é um carinho aos convidados: essa coisa de comer doce na colher não é comigo, vai bem e aceito de boa na casa dos outros, mas eu prefiro fazê-lo “comme il faut.” E assim encerra-se a questão da frescura com um bom termo em francês.
Outros tantos livros ganhei, sem dedicatórias, os livros bons, o carinho grande, mas se tivessem tido a dedicatória, com certeza seriam melhor e mais bem lembrados, como estes já citados o foram. Das que escrevi, já não lembro, o momento foi único e a mensagem que quis transmitir naquelas ocasiões também, e mais valeram talvez que o selo de troca. No entanto, hoje sinto-me constrangido a fazê-las, não cai bem talvez, pode parecer que o livro já foi usado, como se isso tivesse alguma importância. Pelo menos para mim, não tem. Mas o que esperar em tempos em que se faz amigo secreto e se pede diretamente o que se quer ganhar, incluindo tamanho, cor e textura? Eu prefiro correr riscos, embora já não participe de tais brincadeiras, evitando-a sempre que posso, até por que... se o amigo tem que ser secreto é sinal que não é amigo, é apenas uma pessoa com a qual se convive, o que é bem diferente.
Mas voltemos às dedicatórias, uma vez que é o tema e acabou de ocorrer-me que em tempos de redes sociais, câmeras digitais e compartilhamento de arquivos, algo mais se perdeu... A fotografia que se dava a alguém. Em papel, com dedicatória no verso... Uma foto de Izaura, lembro bem, trazia na dedicatória o verso: “O nada vem do longe, o longe é uma miragem. Tá aí a minha imagem.” Outras tantas estão nos álbuns que tenho gosto de folhear e rever, assim como sinto prazer em manusear livros de papel em tempos de “the book is on the tablet.”
Palavras escritas a mão me atraem, além da dedicatória no “Leon Hirszman - o Navegador das Estrelas”, sua autora, Helena Salem, me enviou o convite para o lançamento com um carinhoso apelo: “E o livro ficou pronto. Gostaria muito de contar com sua presença.” Como recusar um convite com esse tom? Guardo o convite dentro do livro.
Mas segue a questão... O selo de troca ou a dedicatória? Insisto ou desisto?


Foto: Djair - Fernando Pessoa - Homenagem ao Escritor em frente à casa que nasceu - Lisboa - Portugal.

sexta-feira, 22 de março de 2013

A multiplicação do peixe


Hoje, sexta feira da quaresma, segundo a igreja católica não é dia de comer carne, ainda que, a cada dia, creia menos em religiões e em seus dogmas, mas gosto dos ritos, gosto da tradição e por isso ainda mantenho algumas, a de não comer carne vermelha às quartas e sextas-feiras da quaresma - período de 40 dias que se segue após o carnaval, tendo inicio na quarta-feira de cinzas e que se conclui com a páscoa cristã, ou mais exatamente à sexta-feira santa. Não devia fazer tanta explicação ao leitor, sobretudo quando escrevemos a partir do maior país católico da atualidade e que tende a ampliar ainda mais seu eleitorado, ops, seu rebanho, por assim dizer, com o novo papa, eleito há poucos dias e que deve superar a todos os antecessores em popularidade e efeito midiático.

Bem, não se comendo carne vermelha resta-nos o quê? Aves, ovos e peixes... E é sobre este último o texto de hoje.

Peixes, ainda que muitos não apreciem, ainda que o cheiro deles quando crus seja horrível, eu adoro a iguaria. E olhe que quando morava na Cerqueira César, bairro da região da Paulista, em frente ao prédio - Condomínio San Martín - havia às quintas-feiras, exatamente aquilo que é o pavor de muitos, uma barraca de peixes, à frente do portão. E, ao chegar em casa, vindo do trabalho, por volta das 18:30, embora a feira tivesse terminado as 14:00hs e a rua tivesse sido lavada, o cheiro ainda estava ali... Não, não, caro leitor, esse não era o pior dos males, o pior era o cheiro de peixe que vinha dos apartamentos vizinhos, à noite, naquele mesmo dia, em especial o de um vizinho coreano, que não sei (graças aos Deuses - todos eles!!) o que colocava no peixe para dar um cheiro tão “inapetecível” quanto àquele. Mas o que importa realmente são os bons e belos peixes que comi. E sobre eles tenho mais algumas palavras.

Creio que o mais saboroso deles tenha sido em Calhetas, praia estreitinha, de azul inebriante que se funde com o do mar, em Cabo de Santo de Santo Agostinho, próximo a Recife. A imagem daquele peixe, que não sei qual era, grelhado, enorme, crocante, me faz salivar. Mantêm-se viva há pelo menos duas décadas, época em que aquela praia ainda era pouco conhecida e frequentada. A imagem vívida do peixe traz também a comicidade de um garçom, rapaz simpático que na mesa vazia, ao lado da minha, serviu uma cerveja a seres invisíveis, em dois copos. Volta e meia, entre eu e mais dois casais, os únicos no bar, ele vinha e bebia um gole, na certeza de disfarçar a escapadela para bebericar um pouco.

Grelhados saborosíssimos eram também os tambaquis do São Francisco, em Penedo, AL. Servidos sobre rodelas de tomates e folhas de alface, num quiosque improvisado à beira do rio. A única coisa desagradável era o som dos boçais que estacionavam seus carros e colocavam o som em último volume numa refrega titânica. Mas isto já esta descrito nas postagens sobre Penedo, assim como os pargos fritos de João Pessoa estão no texto “Jampa”, aqui mesmo neste blog, então quem se interessar, é só utilizar o botão de “pesquisar neste site”.

Aqui em São Paulo ultimamente virou moda o tal pangásio, peixe asiático, importado do Vietnã... É, com uma costa deste tamanho e rios em tal abundância, importamos peixe... Mas este é realmente saboroso e desbancou a merluza, que em geral evito.

Há uma semana, em Teresina, um delicioso filé de pescada amarela, grelhado e depois coberto com molho de camarão e servido na telha quente, já me desperta saudades, as mesmas que sinto em relação a  Júnior e Marconi que me conduziram.

Em Ubatuba, na última semana de junho, acontece a festa da tainha, que termina no dia 29, dia de S. Pedro, padroeiro dos pescadores - olha a igreja católica aí de novo gente!!! - e que o leitor leia isto com entonação de puxador de samba enredo. Foi de lá que passei a fazer o tal peixe, que ali é grelhado; faço ao forno, assado em folha de bananeira e recheado de farofa. Infelizmente hoje a coisa se profissionalizou por lá e ganhou espaço próprio, quando nos primórdios era feito na própria ilha dos pescadores - onde ficam as peixarias mais antigas e o mercado de peixe - pelas mulheres daqueles, portanto mais rústico, mais improvisado, mais gostoso.

Já em Toledo, PR, o negócio é file de tilápia, fresquinho, frito e servido nos pesque-pague com a polenta também frita, crocante, de amarelo clarinho, querendo disputar o tom com a cerveja. No sítio do Sérgio  aprendi a fazer o filé e a defumar o peixe, que segundo ele era o melhor depois do dele, pois como eu não era de lá e não ia concorrer ele me havia ensinado todos os truques para deixá-lo mais perfumado e com aspecto caramelado, entre outros segredinhos que não devo revelar, embora em tempos de internet todos descubram facilmente técnicas e maneiras.

Herculano, que ama pescar, em várias de minhas idas a Minas nos brinda com peixinhos, frutos de suas pescarias ou do tanque onde ele mantém em engorda aqueles que pesca e ainda não tem tamanho apropriado para consumo. Comemos fritinhos, bem torradinhos no fogão a lenha da roça, com limão, colhido do pé naquele instante. É de lamber dedos...

Na casa do beato José Maria, o peixe em geral é feito no forno e quando está quase assado é regado com leite de coco. Pelo menos foi assim que comi lá: corvina e pargo de primeira.

No boteco do pescador, Frávia e eu devoravamos corvinas fritas, e como apenas eu comia a cabeça do peixe, passava horas nessa lenta e prazeirosa ocupação. Com as mãos, sem me importar se o copo de cerveja ficara engordurado ou não, apenas em saborear o prato, mãos lava-se depois. 

Quando Sílvia era diretora da Cinemateca fomos conhecer seu apartamento, que estava à venda e que acabamos comprando. Na resolução da compra,com certeza, teve peso o salmão com mel e mostarda, que nos foi servido de almoço, e que depois comprovei ser excelente tempero também com filé de pescada. Aliás, ali não era o caso, mas porque parte da classe média - e suas serviçais - insistem em falar “salmón”? Alguém explica?

E, como o texto não obedece à sincronicidade do calendário dos acontecimentos, demos então um pulo para mencionar as famosas (e deliciosas) sardinhas de Lisboa, na brasa, comidas com vontade em Alfama e ao som do fado... Ai, ai... E os carapaus, como o da foto ao lado, prestes a ser devorado por nosso tatuado vizinho? Para não falar dos bacalhaus que comi de todas as formas durante os vinte e poucos dias passados ali, abandonados apenas para provar o delicioso leitão, e na ocasião da feijoada que fiz em casa de Verónica (e antes que me corrijam os puristas em bom Portugues angolano o acento é de facto o agudo e não o circunflexo, ô pá!); e no jantar em que Vitor nos levou a um restaurante brasileiro... Mas o bacalhau com batatinhas tio João, produzidas por ele na quinta da Serra da Estrela e feito com capricho e carinho por Maria dos Anjos, “mullher a dias” de Fernanda, se não fosse citado eu mereceria ser levado por Hades ao ínferos agora mesmo. 

E o saborosissímo Muzunguê, feito por Verónica? Prato típico de Angola que leva  óleo de palma (semelhante a nosso dênde), peixe seco, peixe freco e que se come com pirão, mandioca e batata doce? Delicíosamente revigorante. E que nos foi explicado era servido ao final das festas para repor a energia gasta durante os bailes e não raro se começava tudo de novo. Foi mais ou menos assim a feijoada foi seguida pelo muzungue e o que começou as dez da manhã adentrou a madrugada e as duas deixamos os demais, que não sei dizer a que horas partiram.

 No aniversário do Marcello, final dos anos 1990, ele resolveu fazer um churrasco. Naquela noite memorável, conheci Mamoro, amigo dele, que tinha acabado de chegar do Japão; papo vai, papo vem, falou-se em sushi, sashimi e Mamoro, ao tomar conhecimento de que eu apreciava essas comidas, abriu-se em um enorme sorriso e confessou: tinha levado sua faca de filetar sashimi (fugu hiki) e também meio atum e meio salmão, fresquinhos, escolhidos por ele mesmo no Ceasa... Só que ninguém gostava e então ele nem tinha feito. Levou-me na hora pra cozinha, tirou facas, peixes, shoyo e wasabi. A festa ganhou nova temáticae mesmo Marcello, o aniversariante, que nunca tinha comido e não gostava, ao ver-nos a gana falou: “_Meu! vocês estão comendo com tanta vontade, que eu vou experimentar esse troço aí.” Foi o que bastou. O peixe acabou e Marcello aprendeu a gostar de sashimi. Tá vendo como é fácil fazer um japonês feliz?

Em Floriano, PI, era delicioso o escabeche servido no Flutuante, mas o último que comi decepcionou e há anos não volto a ele. Mas já falei em outros textos do melhor escabeche do mundo, no Alô Brasil em Parnaíba, como também falei das piabinhas fritas no flutuante do encontro das águas (Rios Poty e Parnaíba) em Teresina, então, “borá” adiante que os peixes são muitos e o texto se alonga - hora de encerrar antes de cansar quem chegou até aqui.

De onde vem este gosto pelos peixes? Talvez da época de minha gestação durante a qual, vindo minha mãe a São Paulo visitar meus tios, como conta, enjoara no avião e não suportara a comida do hotel em Santos. Indo à casa de meu tio Lourival, então à época o “tio pobre” - e esta história também está já citada no blog em textos antigos - meu primo Nilton chega com uma “enfieira” de cascudos (ou caris) voltando da pescaria no rio. Com eles, tia Maria fez um cozido, a comida mais deliciosa que minha mãe jamais comera. Já era eu dentro dela a aprovar a comida de tia Maria Klaus? É bem possível!


Fotos: Djair - Prato em porcelana – Enguia - Museu de arte antiga de Lisboa  
                     O carecão, vizinho de prédio, almoçava abaixo de nossa janela, à rua dos correeiros em Lisboa. Belo peixe.
                     Verónica prepara o Muzungue.