quarta-feira, 12 de abril de 2023

É o que sou

 Sou a soma de muitas confusões

Eu sou o medo de ser mãe que teve a minha mãe


Sou a soma de várias contusões

Eu sou os cabarés que meu pai frequentava


Sou a solidão de minha mãe

calada


Sou a soma de diversas acusações

Eu sou o grito emudecido no silêncio da lágrima rolada


Sou a soma de variegadas imensidões

Eu sou minha trisavó caçada, acuada pelos cães, longe da tribo


Sou a soma de muitas indagações

Eu sou o desespero mudo de meu avô perdendo seu gado para seca


Sou a soma de variações

eu sou a rima do repente deste mesmo avô sentado à beira da fogueira de S. João


Sou a soma de esticadas ilusões

Eu sou as sacolas de laranjas e tangerinas que meu pai trazia da feira


Sou a soma de muitos nãos

Eu sou os vestidos de festa de minha mãe em aniversários, serestas


Sou a carga de muitos caminhões

Eu sou a vontade de viajar, do espírito nômade de meu pai


Sou um amontoado de traumas

Eu sou o abuso sofrido aos quatro anos


Sou a soma de muitos ais

Eu sou a vergonha de minha mãe, irmão e pai


Sou minha própria nação

Eu sou poesia verso e canção


Sou a soma de muitas lições

Eu sou Senhora Dupré, Hugo e Dostoiévski


Sou tanta coisa que já não sei dizer

Já que não sei, me diga você


quinta-feira, 9 de março de 2023

Vira que virá um sonho

 E estavam operários da prefeitura a cortar os galhos da amoreira (que eu realmente plantei) em frente de casa, da casa em São Paulo, não a de hoje, cá em Vitória, onde plantei manacá da Serra, espirradeira e pluméria, quando resolvi sair para cortar o cabelo, subindo a avenida Pedro Bueno, com sua ladeira cansativa e seus buracos nas calçadas. Estavam comigo meu irmão e meu pai, e para o salão fomos.

Lá chegando, meu barbeiro favorito, o português mais andaluz que poderia existir, dentro de seus trajes que mais lembravam um toureiro sevilhano, realçados ainda mais por seu bigode fino e o colete justo no corpo magro, faltando apenas as cores à roupa, uma vez que o fato de trabalho era bege, atendeu-me de imediato, cobrindo-me com a capa de corte. Tinha lá ele seus ajudantes, a circularem pelo estabelecimento, todos vestidos a caráter.

Durante o corte, que foi muito rápido, o barbeiro entoou um fado, seguido pelo couro de vozes desses outros. Meu irmão perguntava: como tu achaste esse lugar em São Paulo?, ao que eu dava de ombros e mãos, numa expressão de que nem eu mesmo sabia responder.

Corte feito, Manoel (o barbeiro), como não se chamam mais os portugueses, hoje todos são Vítor, Nuno ou Rui, disse que queria levar-me a um novo restaurante português que havia aberto. E descemos ladeira abaixo por uma rua calçada de pedras e estreita, como as ruas que atravessam a Mouraria e a Alfama.

Quando chegamos à rua do restaurante, já a entrada chamava atenção, mesas feitas em cima de barris de vinho, muitos enfeites e alegrias, e adentrando, íamos seno contagiados pela algazarra, a música não era fado, mas se dizia ser, estava mais para um vira da boa viagem.

E vêm chouriços à mesa, e vinho, e cerveja, e fala-se muito o tempo todo. Só sei que digo: “_Entendeu agora?”, ao que meu irmão responde: “_Sim, até eu agora só vou cortar o cabelo lá”. E é nesse momento que chega-me uma moçoila vestida com traje minhoto e larga-me uma cusparada à cara. Apressadamente, passando a mão à face ensopada, devolvo-lhe a saliva ao rosto, e ela sai, ao que Manoel, o barbeiro com seu traje e em chapéu Paris, me diz: “_Calma, esse é o jeito que aqui a moça usa para chamar o rapaz para dançar. O rapaz tira a moça para dançar com um beijo. Vá lá e tiras uma à dança.




Assentindo, saio pelo estabelecimento e, ao avistar uma moça delgada, com aquele mesmo traje de lavadeira do Minho, tasco-lhe um beijo aos lábios e saímos a bailar. Acabando a música, ela simplesmente me empurra e diz: “_Pronto, vais agora buscar vinho.”

Nada mais se passa, que me lembre nesse momento, mas foi um sonho lindo, acordei muito alegre e bem-disposto, achando que merecia ser contado.


Fotos: Flávia Cunha, - Grupo etnográfico Renascer da Areosa - Viana do Castelo Portugal, a dançar o vira.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Teresa

Ela estava no fundo do quintal, a torcer e estender roupas no varal. Quando ouviu o Bem-te-vi a silvar o seu longo beeemteviiii, minha tia Teresa, que um dia, na infância, já tinha sido minha tia preferida, com seus causos, histórias e gargalhadas, disse a imitar o pássaro: “_triste viiida, é, isso mesmo, triste vida, meu pássaro, é essa minha.”

Desde a perda da minha prima Dienny, que morreu no parto de seu único filho, tia Teresa passou a ser uma pessoa amarga, de maus humores e vitimista. Certa vez fui visitá-la numa cidade a 170 km e lá chegando ela me recebe com a frase: “_Mas tu não veio não foi pra ficar aqui, né!?” Imediatamente eu disse que não, que tinha só passado para cumprimentá-la e que já estava indo embora. “Bença tia?” e tomei o caminho de Teresina, para onde fui para a casa de amigos, onde era bem mais querido e festejado. Tia Teresa criou os três filhos sozinha, à custa de subemprego e noites em claro. O marido que era analfabeto aprendeu a ler com ela, que anos antes tinha sido professora leiga em tempos nos quais isso era comum pelos campos Brasis. Em seguida, ele se formou pelo Instituto Universal Brasileiro, como técnico de rádio e televisão, montou uma oficina de sucesso e então a deixou. Como revelou a mim e a uma prima quando demos a ela um pilequinho no Natal, foi culpa dela mesma que nunca foi pra cama – no sentido bíblico – com ele, sem chorar. Achávamos que era por falta de vontade, comum às mulheres de nossa família materna. Hoje penso que poderia ser por dor, falta de lubrificação ou mesmo preliminares. Afinal, como disse Lara uma vez, mais ou menos é assim: “_Vocês acham que somos iguais a vocês, que basta triscar para já ficar duro? Não é assim não. Bu* precisa de lubrificação, de estar com vontade, e tudo começa de manhã, com um café na cama, por exemplo. Aiiií sim, pode ser que à noite a gente esteja com vontade.”

Tia Teresa morou com a filha mais velha na fazenda, até ser expulsa pelo cunhado dono dela mesma, que por sua vez, era irmão de seu genro, depois que num momento de raiva ela o chamou de: “careca da cabeça da rola do diabo”. Encurtando a história: o genro contou ao cunhado e assim se deu a expulsão terceirizada dada através de recados. Já bastante entrada em anos conseguiu uma aposentadoria mínima do governo e foi morar ainda mais pelo interior, onde muitos anos antes era copeira na prefeitura, mais tarde acabou voltando a morar com a mesma filha, quando ela já estava separada do marido. Em sua própria pobre e triste sina, tornou-se alcoólatra. Em consequência disso sofreu uma queda tempos depois, assim que operou da catarata e sem sua jornada de sofrimentos acabou por ficar praticamente cega.

Tia Teresa morreu, que esteja melhor que foi, quando encarnada.