quinta-feira, 9 de março de 2023

Vira que virá um sonho

 E estavam operários da prefeitura a cortar os galhos da amoreira (que eu realmente plantei) em frente de casa, da casa em São Paulo, não a de hoje, cá em Vitória, onde plantei manacá da Serra, espirradeira e pluméria, quando resolvi sair para cortar o cabelo, subindo a avenida Pedro Bueno, com sua ladeira cansativa e seus buracos nas calçadas. Estavam comigo meu irmão e meu pai, e para o salão fomos.

Lá chegando, meu barbeiro favorito, o português mais andaluz que poderia existir, dentro de seus trajes que mais lembravam um toureiro sevilhano, realçados ainda mais por seu bigode fino e o colete justo no corpo magro, faltando apenas as cores à roupa, uma vez que o fato de trabalho era bege, atendeu-me de imediato, cobrindo-me com a capa de corte. Tinha lá ele seus ajudantes, a circularem pelo estabelecimento, todos vestidos a caráter.

Durante o corte, que foi muito rápido, o barbeiro entoou um fado, seguido pelo couro de vozes desses outros. Meu irmão perguntava: como tu achaste esse lugar em São Paulo?, ao que eu dava de ombros e mãos, numa expressão de que nem eu mesmo sabia responder.

Corte feito, Manoel (o barbeiro), como não se chamam mais os portugueses, hoje todos são Vítor, Nuno ou Rui, disse que queria levar-me a um novo restaurante português que havia aberto. E descemos ladeira abaixo por uma rua calçada de pedras e estreita, como as ruas que atravessam a Mouraria e a Alfama.

Quando chegamos à rua do restaurante, já a entrada chamava atenção, mesas feitas em cima de barris de vinho, muitos enfeites e alegrias, e adentrando, íamos seno contagiados pela algazarra, a música não era fado, mas se dizia ser, estava mais para um vira da boa viagem.

E vêm chouriços à mesa, e vinho, e cerveja, e fala-se muito o tempo todo. Só sei que digo: “_Entendeu agora?”, ao que meu irmão responde: “_Sim, até eu agora só vou cortar o cabelo lá”. E é nesse momento que chega-me uma moçoila vestida com traje minhoto e larga-me uma cusparada à cara. Apressadamente, passando a mão à face ensopada, devolvo-lhe a saliva ao rosto, e ela sai, ao que Manoel, o barbeiro com seu traje e em chapéu Paris, me diz: “_Calma, esse é o jeito que aqui a moça usa para chamar o rapaz para dançar. O rapaz tira a moça para dançar com um beijo. Vá lá e tiras uma à dança.




Assentindo, saio pelo estabelecimento e, ao avistar uma moça delgada, com aquele mesmo traje de lavadeira do Minho, tasco-lhe um beijo aos lábios e saímos a bailar. Acabando a música, ela simplesmente me empurra e diz: “_Pronto, vais agora buscar vinho.”

Nada mais se passa, que me lembre nesse momento, mas foi um sonho lindo, acordei muito alegre e bem-disposto, achando que merecia ser contado.


Fotos: Flávia Cunha, - Grupo etnográfico Renascer da Areosa - Viana do Castelo Portugal, a dançar o vira.

10 comentários:

  1. Viajei em seu sonho lindo e me imaginei sentada a bela mesa comendo um bacalhau com batatas e vendo a cena da cusparada....
    Alba.

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  2. Muito bom o conto, esplêndido

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  3. Um sonho desses, vc acorda e continua a sonhar👏👏👏

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  4. Fácil nos transportar pra dentro do sonho com essa riqueza de detalhes no seu conto... até a parte da cusparada, acordei. rsrs Como sempre, ótimo de ler.

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  5. Amei!!!! Fiquei imaginando cada cena ...

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  6. Amei o conto, só não respondo por mim diante de uma cusparada. RsRs!

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  7. Querido, só hoje tomei tento desse Prajalpa não lido. Mas eu gostei muito, muito!! Ah mas a cusparada é mesmo muito peculiar de sonho!! Bj

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  8. Incrível , dá para sonhar com a forma que conta , como se estivesse presente

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