sábado, 24 de março de 2018

Texto sem fundamento


Ainda nem são cinco horas da manhã e já acordo. De acordo com a in-Sônia, o horário certo é mesmo este, ela nunca se atrasa muito. Teimo em ficar na caverninha, apelido carinhoso que dou ao edredon quando cubro-me dos pés a cabeça. O verdadeiro homem da caverna. A barba crescida de meses, pelo frio, preguiça, modismo, e que sofre apenas pequenos talhes aqui e ali ajuda a compor o visual da personagem.
Nos ouvidos os trechos de poema, voz na cabeça é de Maria Bethânia.

Detalhe arquitetônico ao lado da ponte D. Luís I - Porto
"Mora comigo na minha casa um rapaz que eu amo. Aquilo que ele não me diz porque não sabe, vai me dizendo no seu corpo que dança para mim. Ele me adora e eu vejo através dos seus olhos um menino que aperta o gatilho do coração sem saber o nome do que pratica. Ele me adora e eu o gratifico só com os olhos que o vejo. Corto todas as cebolas da casa, arrasto os móveis, incenso. Ele tem medo de dizer que me ama. E me aperta e mão, e me chama de amiga”

Ao texto de Luiz Carlos Lacerda segue a voz dela emendando a canção de Caetano “Ah, esse cara tem me consumido, a mim e a tudo que eu quis…”

Está em minha cabeça há dias. Devo ter ouvido pela primeira vez da metade para o final dos 1980, e a despeito do meu pai escrever poesias, talvez tenha sido com a voz de Betânia que comecei a amá-las de facto. E por isso as vezes elas entram e é dificíl saber quando saem. Martela-me também a cabeça - será devido minha crise existencial, cada vez mais crise e menos existência? – a frase inicial do poema I´m nobody (Não sou ninguém) de Emily Dickson e- “Não sou Ninguém! E tu, és quem?” Ok. Ok. coloco o texto do poema minimalista ao final.

Não a poesia não vai ajudar com a insônia, na verdade como se tivesse vários cérebros, os pensamentos ocorrem todos ao mesmo tempo, Dickson, Bethânia, cobranças de leituras técnicas, textos que deveria aproveitar para escrever enquanto a ideia está ali… Levanto, ligo o micro e venho para cá, lá fora, 7, 8 graus, os termômetros divergem, eu, concordo com eles: está frio! Ligo o aquecedor, coloco sob a mesa de trabalho, esquento leite na panela grande pois as outras estão ocupadas ou sujas, afinal a taça de vinho também está ali à pia, em consonância com elas, o Feng Shui é perfeito, filtra a energia negativa que vem do sudoeste. Lembro de Gizelton me dizendo pra por canela. Não tenho, e o beato que tem o dom de transformar milho em canela está do outro lado do Atlântico, adoço com mel e anoto canela na lista de compras que não farei hoje, os textos técnicos… Sim, os textos técnicos…

Penso a quem pode interessar um texto desses, e dou-me conta que o que tinha na cabeça ao ligar o micro já não existe, foi embora e não volta. Assim como tempo correu, o leite quente foi sorvido, e vamos então voltar a caverninha… Os textos técnicos ficam para quando acordar definitivamente. Agora a poesia sufoca-me. Dou-me conta uma vez mais que ontem foi o dia dela. Num fiz nenhuma, vai ver é por isso que ela me castiga.
Bom dia!

Não sou Ninguém! E tu, és quem?
Ninguém – Também?
Então somos um par?
Não conte! Podem espalhar!
Que triste – ser – Alguém!
Que pública – a Fama –
Dizer seu nome – como a Rã –
Para as palmas da Lama!

Emily Dickinson: "I'm nobody", - "Não sou ninguém"




quinta-feira, 15 de março de 2018

Eguagem

Se está tudo na cabeça, porque não consegue migrar para o papel?
Todas as justificações, todo o plano de trabalho, tudo, tudo está ali... Mas tem aversão à tela, aos caracteres, significantes, significados, palavras, frases, metáforas, mesmo oximoros... Permanecem nas sombras do cérebro, não querem abandonar a caixa craniana, e permanecem a espreita. Verbalizar sim, oralmente, como a cultura africana, a nordestina do cordel, a mineira dos casos... Fora o alfabeto! Ai de mim que permaneço insone mesmo quando o corpo só deseja a cama. Depressão pré-texto? Porque não? Não há de ser menor que a pós-parto. Sim, antes das pedras atiradas guardem as proporções, e lembrem-se do eu lírico. Que à merda vão as explicações que me são cobradas.
Sem palavras. Não as quero, só abraços.
Verbalizem sentimentos com atos, não com renhenhéns, prajalpas e três beijinhos, que nem são dados à face, mas ao vento.
Quero minhas palavras de volta, não as metáforas e poesia que vem mais facilmente,
mas a do texto técnico. Sou da produção… O administrativo me entedia e mata. Já não aguento mais tomar café. E o tomo por pura desculpa para protelar. Ah a procrastinação, essa minha amante tão sedutora…
Tão o é a ponto de ter fugido do texto que deveria estar a escrever e vim embrenhar-me neste. Pobre coitado que escreve textos fúteis e listas de compras que sempre esquece de levar. Que escreve cartas sem respostas pois hoje todos preferem e-mails. Que manda cartões postais que as pessoas não recebem pois os correios hoje são uma piada de mau gosto.
Ah quanto lamento… Mas para isso também servem as palavras.
E se só a elas tenho, que vão ela ocupar a tela, fazer-me companhia e distrair-me ainda mais.
As ciladas que me meto… As coisas que aceito sem ter certeza de dar conta. Que a bem da verdade muitas vezes saem bem, mas que só eu sei o sofrimento por trás do cenário erguido.
Ai de mim. Que se digo não sou compreendido, se não digo muito pior, e que se tenho muito a dizer prefiro calar-me. Que vejo demais, que presto atenção demais em coisas que não mereceriam uma olhadela de escárnio.
E que se essas aqui saíram fáceis, voltemos ao trabalho e encerremos aqui essa éguagem. Que se fé eu tivesse rezava agora com fervor sem sentir pena de mim e deus existindo, e sendo mulher, dava-me carinho de mãe e inspiração de técnico. Vamos ao trabalho, que esse desabafo já deu.