quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Amarcord


Amarcord é uma referência à tradução fonética da expressão a m' arcord (eu me lembro), usada na região da Emilia-Romagna, onde nasceu o cineasta Federico Fellini, e que empresta o nome ao título a um de seus filmes.

No drama histórico (série televisiva britânica) Downton Abbey, a personagem de Laura Carmichael, Lady Edith Crawley, perdoa as maldades da irmã Lady Mary (Michelle Dockery), pois somente elas é que viveram naquele lugar, tiveram aquelas experiências, apenas elas lembrar-se-ão de tudo o que viveram.

         Existe uma velha canção brasileira, que lembro-me, era cantada por meu pai, cujo verso mais marcante, pelo menos assim parece-me, diz “recordar é viver, vivo porque amo você.”

Pixação em Coimbra - Portugal
        Mas o quão boas são as lembranças é um fato ultra pessoal. Não costumamos escolher as lembranças, abruptamente aparecem entre nossos pensamentos e nada, ou pouco podemos fazer para que se vão. Bem, deve haver lá quem consiga esquecer fácil, não é o caso desse que digita essas palavras

         E o fato de ter vivido com alguém, desse alguém alguma situação acaso aproxima-nos mais? Sim, porque cremos que a mesma intensidade que nos atinge também atinge o outro, mas nem sempre é assim, há casos de convivências longas, o que não quer absolutamente dizer que seja uma longa amizade. Ter vivido algo com outra pessoa não significa absolutamente que ela respeite aquele momento, que ela tenha seu sentimento equiparado ao seu, pelo contrário, pode usar isso inclusive como forma de envolvimento apenas para tirar lá suas vantagens, seja um almoço “grátis”, um empréstimo, um contato com alguém que conheces e que a ela interessa. Viver com alguém uma situação agradável pode trazer saudosismo, mas o mais das vezes as saudades são de quem éramos naquele momento, de nossa ingenuidade perdida, da nossa fé no outro, de termos rido sem reservas.

         E as más lembranças? Ah, essas fustigam de fato e com requintes de fixação na mente que são um chiclete; quanto mais queremos nos livrar delas mais se fixam. Pode haver quem nunca tenha perdido o sono por lembrar uma vergonha ou raiva que passou em 1930, o que não é meu caso, perco o sono e tenho a mesma vergonha ou raiva. As situações são revividas e a raiva também. Lembro (sim o texto é sobre reminiscências então o verbo lembrar vai repetir-se à exaustão, oublié?) de uma situação onde um sujeito que fazia questão de me lembrar de desagradáveis momentos profissionais, quando a raiva me tomou, disse: “_Nossa, ficas com raiva, a gente relembra essas coisas pra relaxar, não é pra ficar com raiva.” E respondi-lhe: Fico com raiva sim, isso não é pra relaxar, queres que eu relaxe faz-me um bom boquete que isso sim, relaxa pra caramba.

         Não precisamos de pessoas a lembrar-nos momentos maus, eles aparecem por si. E recordar momentos bons, vá lá, não são argumentos para se perdoar sacanas. Que me desculpe lady Edith.

         Sempre disse que se pudesse escolher quais os neurônios seriam queimados, eu seria adepto da cocaína e de outras drogas, mas como não se escolhe, melhor deixá-los intactos, as raivas e decepções já os queimam o suficiente.

         Quantas supostas amizades já tivemos e gostaríamos de esquecer? Quantas pessoas já estiveram conosco e nos esquecemos seus nomes, ou pior, seus rostos? Quantas vezes não nos chega alguém e fala de uma situação ou uma pessoa da qual já não nos lembramos? Quantas senhas esquecemos? E parentes, tios, primos, ou vizinhos, colegas de escola, que são apenas um mero rosto, sem que os liguemos mais a nada, ou então colocamos lá junto a imagem desse rosto uma palavra-chave: “metida”, “chata”, “bonzinho”...

         E o outro lado dessa moeda sem valor, o sentimento que nos evoca a pessoa, às vezes despertado por uma canção, um cheiro, um prato? “_Nossa, lembrei de fulano!” E o fulano em questão nem era-lhe alguém tão ligado a si. As lembranças estão ligadas aos conceitos que damos a uma situação ou personagem. É mais fácil dar um parecer sobre algo ou alguém que esquecer algumas dessas marcações que lhes fazemos. É dia de ferrar gado, ou melhor, qualificar pessoas. Uma vez dada a alcunha ela gruda-lhe, e embora a primeira impressão geralmente seja errada, ela é a principal responsável por essas tatuagens mentais que lhes emprestamos. “Ai, a primeira vez que te vi achei-a tão...” E o qualificativo fica por conta de cada um. – Riem-se disso ambos, se a amizade está em voga, ou se já não está a frase é outra: “Bem que quando eu a conheci tive a impressão de que era...” e acrescente-se: “minha intuição não fa-lha”.
        
         Esse é um daqueles textos onde o fogacho da narrativa é o sentimento e por isso mesmo ele pode não ter lógica alguma, talvez mais um desabafo que uma reflexão, enfim é o que temos pra hoje, um texto onde se relembram sentimentos, ou melhor onde lembra-se de falar das lembranças, sem fim, sem fio condutor, apenas isso: um texto a ser lembrado, ou quiçá, a ser esquecido.

terça-feira, 14 de maio de 2019

Animalidades e Inanimações.


“Sou um homem, sou um bicho, sou uma mulher...” A voz de Ney Matogrosso afaga-me os ouvidos com esses versos, nos quais ele continua: “sou a mesa e as cadeiras desse cabaré...”
Pois bem, no último texto, falamos justamente dessa dualidade do ser humano, ser homem, ser bicho... Negar um para ser o outro... Ser muito mais bicho que humano. Terminei o texto e fiquei com essa trilha sonora na cabeça. E, junto, uma sensação de que não terminou.
Lembrança de uma amiga que preocupava-se muito com a doutrina espírita da reencarnação pois não queria de forma alguma já ter sido cachorro. Uma vez, numa destas reuniões, fez a pergunta e lhe responderam que não, que bicho nunca vira gente, gente nunca foi bicho... Será? Correntes do hinduísmo, que é muito mais antigo que o cristianismo, dizem que sim. E mais: que podes voltar a sê-lo. Eu, em verdade, acredito mais nessa corrente que permite a involução. Aliás, vejo pessoas próximas e políticos distantes (não tenho muita proximidade com esse tipo de besta), voltando como asnos ou feras peçonhentas.
Tenho amigos tão carinhosos com bichos que sempre dizia: quero voltar gato do Zé Luís ou da Fernanda.
Ora, os animais humanizados demonstram muito mais respeito e carinho pelos que lhe são próximos (humanos e outro bichos) que os humanos entre si. Há ciúmes, mas não competições sujas por promoções de empregos, por carinhos maternos e paternos, por heranças...
Ser homem, ser bicho, ser mulher... Ser um objeto inanimado... O que somos durante todas as horas de nossa existência? As impaciências, rangeres de dentes, berros, afagos, inércia... Quantas máscaras... e nem todas exatamente humanas. Como os bichos, sentimos fome, frio, calor, cansaço. Cagamos, urinamos e nos sentimos amados ou rejeitados. Rejeitamos também, como cães que cismam com determinada pessoa e nada os faz calarem-se ou serem amistosos. Gatos que se escondem de gente ou pássaros e marimbondos que vêm fazer suas casas nas varandas das casas, como a pedir proteção.
Foto: Djair *
E o ser homem e mulher, o desejo do macho de sobrepor-se, e mesmo de ter o prazer sexual e lidar mal com a rejeição do sexo oposto (ou até do mesmo sexo), não é um impulso animalesco que tende muitas vezes a deixar a racionalidade e fazer com que certos tipos partam para a agressividade e o desrespeito? Preferiria eu voltar como um cão amoroso.
Em uma canção de Caetano, ele fala sobre “o macho adulto branco sempre no comando”. A perpetuação desse comando não é uma forma de territorialidade de certas espécies? Como os que banem os outros machos do bando logo após esses amadurecerem sexualmente?
Um tio, ótima pessoa, afetuoso, cordial e aparentemente sensato, tinha por preceito que ao completar dezoito anos os filhos tinham que sair de casa. De qualquer forma. O instinto materno de minha tia, da proteção aos filhos, levou-os à separação por isso. Pensamentos e instintos puramente humanos? Quem equaciona essas sensações, modus vivendi e decisões? Quem tem razão, o homem, o bicho, a mulher? Nem com muito álcool nos copos sobre a mesa, e sentados às cadeiras de um cabaré, poderíamos (pelo menos, eu não) chegar a deduzir esse teorema.
A grande invenção criacionista deixa de fora as evoluções animais e nos coloca num patamar próximo a um criador, sua imagem e semelhança. O quanto de animal teria essa força criadora? No Budismo, no final, nos fundimos com o todo, alguns xamãs indígenas prestam culto aos espíritos animais e a eles incorporam... A religiosidade, criação humana, é tão diversa quanto as espécies animais, e olhe lá, nem todas elas estão catalogadas, e das que estão, muitas foram vistas pouquíssimas vezes e por um número reduzidíssimo de pessoas. Em moda, atualmente, anda o termo pessoa tóxica... Seriam as pessoas nocivas? Mas o termo bem poderia ser vírus, que estão no reino animal, como outrora era comum chamar o fulano que não largava o “pé” do outro de carrapato. E quando a pessoa é verborrágica? Fala mais que papagaio? Parecem umas galinhas?
Um amigo querido, quando quer dizer que uma pessoa é feia, diz logo: “Encontrei fulano, tá um “camelo”. E antes que perguntem-me porque camelo, como já o fizeram, visualizem a face de um camelo, ruminando...
Reinaldo, na sexta série, era chamado de porquinho, não só pela camisa nem sempre limpa, mas também por ser gordinho. A filha da professora Isamar, um dia que foi com ela ao colégio, riu-se muito e falou à mãe do apelido do colega, mas emendou: “Ele é feio, parece uma menina.” Não sei o que a levou ao fazer o comentário, mas foi um dia de risada.
Dona Maria, da época da piscicultura, se referia a uma vizinha da fazenda como tendo corpo de abóbora.
E assim seguimos próximos dos animais, dos objetos, dos objetos inanimados... Seguimos sendo homens, bichos, mulheres.

 * Conjunto de objetos inanimados a adornar um bar no centro histórico de Lisboa

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Animalidades


Tenho imenso gostar pela escultura de Giacometti “O cão”; talvez seja a escultura que eu mais goste. Além do cão retratado, animal que tive muitos, durante infância, adolescência, fase adulta, e agora, na velhice, também tive gatos, jabutis, peixes de aquário e até um tamanduá que recebeu a alcunha de Marina Correia Lima, em homenagem à cantora que eu tanto apreciava à época.

Mas “o cão” de Giacometti me fala mais através de sua história. Segundo me chegou, e já não sei de onde veio a informação (ora leitor, faça seu trabalho de casa e pesquise; a mim, basta a lembrança verdadeira ou não, mas que se tornou afetiva junto a imagem da peça), o escultor teria dito de sua obra que era um autorretrato. Um dia de chuva, ele todo molhado, sob uma marquise, vê passar um cão, e pensa: “esse cão sou eu”, molhado, humilhado, cabisbaixo... E ao chegar em casa faz a escultura. Coisa mais, coisa menos, foi isso que li. E assim identifiquei-me. Quantas vezes também não me senti um cão! Tanto o cão humilhado, como o cão raivoso, o cão terno, carente, desprotegido, agressivo... Um cão.

Foto: Djair - Parque dos Budas - Bombarral - Portugal
“Animal tem que viver como animal, quando não vivem como tal, se matam.” A pichação em Santos – SP, nos anos 1980, nunca mais saiu de minha cabeça. Fica ali adormecida e vez em quando aflora. Aflora quando vejo nossa animalidade, em mim, no próximo, em amigos, familiares...

Animal tem que viver como animal...

E como estamos próximos a eles, sim, próximos porque nos esquecemos que também somos um, o tal de animal racional, que destrói tudo a sua volta, esquecemos nossa efemeridade e construímos ermidas que atravessam séculos, estradas que ligam povos, mas há que se cobrar pedágio que enriquece alguns... Quem? O rei leão? Afinal, o rei dos animais recebeu esse título do homem, que dizima o meio ambiente deste e o seu próprio, assim destruindo a eles e a si, e a toda a cadeia próxima, não só a animal, mas a de todos os reinos... Ai de novo: a palavra real. Só o homem, em sua animalidade, tem essa necessidade de coroar cabeças e espécies. Talvez pela fragilidade de sua existência, senão o mais frágil o mais necessitado de cuidados de todos os reinos. E assim cria armas e formas de defender-se, mais amiúde essas formas de defesa são a forma de extermínio ou ameaça do outro. Outro homem, outro bicho.

O cão de Giacometti, os cães de Pavlov, o cão dos Baskerville, o melhor amigo do homem. O cão talvez seja o animal mais próximo e mais presente ao homem, em todos os estados já descritos acima, e outros que fogem à falta da memória de elefante que já não tenho. Famílias tem cães por conta das crianças, alguns pais e mães metem medo às crianças dizendo que o cão morde; sem conhecer o cão, já o julgam e condenam. Que outro animal condena a sua espécie e as alheias?

Essa “superioridade” autoproclamada é mesmo um complexo animal de inferioridade às avessas. Uma constante afirmação de que o animal é o outro, pois julgamento e preconceito, se o homem não for a única espécie que os tem por distinção, é das raras. Só conheço o preconceito animal em O Pássaro Pintado, de Jerzy Kosinki, onde o autor narra que, como diversão, uma personagem pega um pássaro e o pinta de outras cores diferentes à sua espécie e depois o solta. Ao cantar como os seus, esses não o reconhecem e assim batem-lhe até à morte. Essa metáfora quanto à não aceitação do outro, ao deslocamento que se sente em certos habitats sociais, é perfeita. Que outro animal pratica bullying? Importa-se se o seu igual é mais gordo, ou baixo, ou de outra cor? Se tem uma preferência sexual diferente da sua?

O homem reage a isso com ferocidade... “Ferocidade”, algo condicionado às feras... Ao animal... E o quão ferozes podemos ser... Pedro Nava disse uma vez, naquela minha década preferida, os anos 1980, que achava o homem o pior animal da criação e que tinha essa impressão do próximo, e de si mesmo. É outra das frases que foram tatuadas em minha memória que já está a falhar. Aliás, isso é algo que preocupa-me e mete-me medo. E o medo não é mesmo um instinto animal? O instinto mãe de toda a agressividade? E lá vem de novo o círculo, agressividade seria um instinto... animal... Círculos não tem ponta e, por isso, voltamos aos temas.

         E o tema dá panos pra manga, daria para cobrir um circo de tão extenso é o tecido e entremeações de sentimentos e reflexões sobre o homem e os bichos. Inclusive, o objeto escolhido para a hipérbole, o circo, é ele mesmo a casa de homens e animais postos em exibição, uns como talentos, outros como feras domadas... Nenhum outro animal submete outra espécie a seus caprichos senão o homem, o mais feroz... Ops, submetem sim. Os cães submetem seus donos, com sua fidelidade, carência e demonstrações de afeto. Ou os gatos, companhia das mulheres solitárias, segundo alguns. E quem poderia tecer um comentário tão maldoso e difundi-lo a ponto de torná-lo quase um senso comum em determinados círculos, senão a besta humana? Como disse Fernando Pessoa a respeito desta: “Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem”, que entre todas as espécies é a que ferra e marca a sua e as outras espécies!

E se fossemos continuar como as citações em uma tese, poderíamos partir para a “vida de gado” do “povo marcado” de Zé Ramalho, e tantas outras. Mas esse animal que digita cá está cansado, assim como o leitor pode também já estar irritado com esse texto que nada diz além do óbvio e que ulula constante sobre o tema. Encerremos aqui, é o que diz o bom senso, aliás, criação humana, o bom senso que distingue o homem dos animais. Ou não...