quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Siamesas

Siamesas, andam juntas... Um mesmo corpo, os membros inferiores diversos as conduzem com as diferentes vontades. A cada instante é uma delas que avança, no passo seguinte é a outra que está à frente.

São como uma cobra de duas cabeças, onde uma devora a outra até que, sem a poder engolir por completo, exaurida, a vomita, e vencida pelo cansaço, pela dor, pelo incômodo do regurgitamento, é ela então a devorada, lentamente sendo tragada, até que o ciclo se reinicie.

Antagônicos os sentimentos se sobrepõem, se entrelaçam, se entrançam, se cruzam em um voltear promíscuo onde já não se sabe quem domina e quem é dominado, onde o côncavo se torna convexo e se amolda à forma do outro para ceder-lhe a vez. O círculo continua como a terra, redonda em seu movimento de rotação, por onde o sol ilumina a cada canto em um momento, enquanto ao outro obscurece, a aguardar o outro momento em que estará a receber a luz e calor em gozos espasmódicos, para depois de novo cair em trevas e frio, sem deixar vestígios do lume de um instante de distância.

Assim siamesas, a vitória e a derrota, andam juntas...

Foto: Djair - Por de sol - Quebra Cangalha - Oliveira - MG

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Saberes simples

            “Algumas pessoas não tem nada a dizer, mas você precisa ouvir muito tempo para descobrir.”

Desconheço, a autoria da frase, mas concordo plenamente; a cada vez que vou a palestras, seminários, congressos e afins, me recordo dela.

A síndrome do palco, assim como a síndrome do microfone, estão cada vez mais disseminadas, uma verdadeira epidemia, e seus atores, estes, são cada vez mais canastrões. O que torna um verdadeiro prazer quando vemos e/ou ouvimos alguém a falar com conhecimento de fato, que respeita o tempo do outro e não se perde em citações exageradas a fim de mostrar conhecimento. Aliás, aqui já falei sobre os repetidores de citações e suas referências sem fim, que se prestam a demonstrar erudição; então gostaria de pular este capítulo e deixar estes a arrebanharem fãs entre os incautos (incultos?) e fazerem seguidores às dúzias em suas redes sociais a cada nome de vulto repetido após uma frase atribuída a eles. Mas com uma densidade rasa em deus discursos.

Por isso mesmo, o texto foi aberto com uma frase anônima, pois quantos “anônimos” não têm uma sabedoria pura, clara e uma capacidade de lógica e raciocínio desenvolvidos por si próprios, pela arte da observação, o que permite que lampejos luminosos lhe invadam o pensamento? Eles o fazem sem termos científicos, não se preocupam se a oração é coordenada sindética ou assindética, não colocam palavras ou termos como “paradigma”, “baseado em evidências”, e etc. Aliás, o grande ganho de já estarmos na segunda década do século é que agora caducou o “às portas do terceiro milênio” dos discursos travestidos de novidades.

Esses anônimos iluminados nunca usaram esses termos, mas trazem em seus discursos simples e objetivos, em suas metáforas diretas e bem acertadas, um conteúdo maior que o usual “#fato” com que hoje, muita gente acha que está a comentar, a dar uma opinião, a tecer um pensamento, e na verdade não diz nada, não quer dizer porra nenhuma. Mas aqueles primeiros, esses sim tecem comentários certeiros a respeito da vida, da alma humana, da sociedade, e assim homens singelos tornam-se filósofos, como tio Onofre, vaqueiro de tia Maída, a falar sobre fazendeiros para quem serviu e cujos filhos perderam toda a riqueza acumulada pelos pais, por orgulho e gastança para ostentar, trazendo hoje a infelicidade na alma ao constatar que os amigos o abandonaram junto com a fortuna que se ia.

Ele não cita filósofos, não cita escritores laureados, cita a vida.


Foto: Djair -  Tio Onofre, vaqueiro, agricultor, rezador e sábio.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Oração de Djair Rodrigues de Souza


           São Francisco de Assis tinha sua oração, repetida até hoje por seus fiéis, Jesus nos ensinou o Pai Nosso, que repetido com fervor espalha-se por todos os continentes, isto passados dois milênios.

          Não tenho essa pretensão... Hoje faço minha prece, quem sabe, eu venha a ser atendido. Podem achar estranho num blog, mas como disse várias vezes, cada semana escrevo aquilo que vem à hora, e hoje, foi ela veio.
Assim seja.


        
Oração de Djair Rodrigues de Souza

 Senhor,  fazei-me alcançar a vossa paz
para que nunca fomente ódio, desesperança ou rancor;
Que em nada veja ofensa, e perdoe a ignorância
seja em mim mesmo ou em meu irmão;
Que as minhas dúvidas não abalem a fé, tão pouca, que tenho;
Que esta cresça e floresça, pois no coração do homem, também em se plantando, tudo dá;
Que no meu seja plantada a capacidade de renunciar, de perdoar, e então saberei o verdadeiro significado de amar;
Que a alegria dos meus próximos esteja sempre presente
e que ela baste para aquietar-me o espírito.
E assim seja eu uma ilha de paz, e possa exercitar a compreensão, o carinho e a gratidão;
Mas se nada disso puder ser assim,
que eu possa compreender que não estou pronto, e é por isso que preciso lapidar-me
para encarar as coisas como são e não como acho que devam ser. 
 


sábado, 3 de novembro de 2012

Pereirão

          No cais ela ainda expõe seu corpo ao vento, lava roupa... Sua e dos outros. Como quem lava da alma pecados e manchas... Como quem tira do corpo grudes, suores, cicatrizes, nódoas e nós... Outro tipo de aborto. A prostituta velha que já não serve a função, que ninguém mais quer. Os homens consumiram-lhe as carnes, os anos o viço. Esfrega os panos com sabão caseiro, comprado a quilo no mercado. Esfrega o corpo com a mesma espuma, a alma com a mesma água do rio que corre lambendo-lhe as pernas. E lava-lhe o corpo como ela enxágua lençóis, fronhas, blusas e cuecas.
          Um novo batismo, feito da água do rio e do sal do suor que escorre no rosto cansado, marcado, envelhecido e triste. O mesmo sol que abençoa a penitência, a remissão dos pecados, e impõe seu castigo aumentando a pena, seca a roupa estendida no cimento do cais onde, refletido no concreto, turva-lhe a vista, doura-lhe o corpo cansado, disforme, ressecado. Testemunha solitária do lava-torce-esfrega não crê nos segredos que a lua lhe contara sobre ele, notícias doutro tempo, tempos de sua glórias que longe vão. Onde aquela indiscreta (a lua) testemunhava o mesmo corpo, que tinha formas arredondadas, curvas suaves, carnes firmes, dos mesmos olhos, que tinham brilho, sonhos, sedução. Da mesma boca, que tinha cor, dentes, sabores, sorrisos, que prometia prazeres indescritíveis, que matava tantas sedes e com alguma graça soltava baforadas de cigarros na cara dos homens que viam nela Marlenes e Gretas... Das mesmas mãos que naquele tempo não tinham calos, frieiras, feridas, unheiros, artrites, mas tinham esmaltes, recebiam beijos e dinheiros, anéis e pulseiras, e em vez do sabão marrom de cheiro forte empunhavam taças, copos, e eram hábeis em carícias.

           Hoje só tem o rio, onde lava roupa, onde à noite vem pescar para ajudar no sustento, onde toma banho e distraída brinca com as águas esquecendo da vida, ou lembrando de outra vida e de repente volta a si, a cada piau ou mandi que o anzol lhe traz sob o brilho da lua que não a reconhece sem o ruge, sem o riso, sem dentes.