segunda-feira, 4 de junho de 2018

Réquiem a Lourival, meu tio querido.

Tio Louro, foto: Nilton de Souza
Ele era o mais velho dos três irmãos.

Em nosso último encontro emocionou-se muito ao falar de meu pai, de quem sentia enorme pena não estar junto em seus últimos dias. Falou-me de como meu pai desperdiçou seus últimos dias por conta do alcoolismo, de como isso lhe causava terríveis sensações sendo ele mesmo alcoólatra na juventude. Tia Maria Klaus, aquela bela moça que desposara ainda pouco mais que garoto sofreu muito com isso, mas ele largou a bebida a tempo de refazer um lar. Falava do meu pai com forte impressão, de como ele próprio trabalhava a fim de que os irmãos estudassem. Sobre tudo o Olavo, meu pai, que ele achava o mais inteligente, e Raul, o mais novo. O Lindoval, esse que depois de um casamento rico afastou-se do resto da família, nunca sobre muito, e sobre esse ele também não falou-me.

Era o mais humilde, satisfeito com sua vida simples, lembro, entre as mais antigas reminiscências as visitas a sua casa, como eu me sentia bem ali, a geladeira antiga que eu achava linda, e destas que hoje poucas existem nos apartamentos dos descolados, e minha paixão o fogão a lenha, que um dia ele desmanchou, tendo presenteado tia Maria com um fogão a gás… Isso era inicio dos anos 1970. Uma longa estrada de terra percorríamos até lá chegar depois do ponto final do ônibus. Nessa época meu pai tinha acabado com o fusca num acidente onde todos se espantavam de nada ter acontecido a ele.

Mas trago comigo a reminiscência de minha mãe que grávida de mim, enjoava com as comidas do hotel, em Santos, em visita a família do marido. Sua melhor refeição naquele dia foi na casa dele, onde meu primo Nilton chegara com os peixinhos pescados no rio próximo, tia Maria os cozinhou, fez pirão, caldo forte. Ele fala-me nesse manjar dos céus até hoje.

Tinha uma mexeriqueira enorme no quintal imenso, mais tarde tomado por casa dos filhos. Um pé de rosas, isso deixou de existir mais tarde. Seus tesouros ficavam em seu quartinho no quintal, coleção da revista placar, flâmulas do São Paulo, time de seu coração, como também do meu pai. Tio Raul era um desgosto, torcia para o Corinthians, Ali ficavam seus materiais de trabalho, eu adorava a morsa, com que prendia coisas para serrar, apertar ou que o valha… Sobre a mesa de madeira onde esta era presa havia um grosso papelão, que com pingos de graxas e óleos, acumulo de poerias e suores tinha tomado uma densidade de couro. Os troféus do Ponte Preta, time da terceira divisão que tomava emprestado seu nome a ponte do Bairro, que nos anos 2000 viria a cair, esquecida pelo patrimônio público. Servia inicialmente a travessia de um trem que não mais existia.

Aquela área rural onde ele se situou por décadas era então bela geograficamente e sentimentalmente me desperta saudades de um tempo feliz. águas limpas a correr em riachos, morangos e amoras silvestres, no meio do bananal que já não existe. No quarto dos tios uma lâmpada azul, que pouco iluminava. Dormíamos ali, em visita quando vinhamos de Minas. 

Os primos calorosos, os mais velhos, Nilton, Nilson, Eliete, Neide e Nereide encontramos anos depois já casados e com suas próprias famílias, mas sempre a gravitar em torno dos tios, pais amantíssimos. Elizete, Dida e Marlene mais novos, regulando as idades comigo e meu irmão, brincavam conosco, brigavam conosco, conversavam e assim tecíamos planos e sonhos. Esperavam sempre o tio que vinha diariamente almoçar em casa. Quantas vezes eu também ali estava. A ouvir suas histórias do dia-a-dia. Depois voltava ao trabalho até a noitinha, ganhou medalha de funcionário padrão, que foi juntar a seus tesouros no quartinho, junto aos álbuns de fotos da família, com gente que só ele sabia identificar. Ao lado de Carlos Magno e os 12 pares de França, livro volumoso que fora de minha avó, e, que nunca tive a oportunidade de ler.

Um dia deu-me uma jaqueta de couro, preta, que usei até onde não sei mais. Outra feita uma camisa de compridas mangas, bege, que foi minha preferida até acabar.

Seu sorriso era tão gostoso que dói-me hoje lembrar. Emociono-me e sinto saudades. Uma vez fomos a um jogo do São Paulo, no Morumbi. Ele, meu pai, meu irmão e dida, nosso primo, no jogo contra o atlético eu era a ovelha negra, torcia para o Palmeiras, time de meu avô, já contei aqui isso, e de como meu tio perdeu no estádio seu radinho, onde acompanhava o jogo do corinthians.

Houve um tempo onde tia Maria, Nereide e Eliete frequentavam uma igreja episcopal, a casa da Benção, em Santos. Ele as acompanhava e nos levava. Íamos pela fara do passeio. Logo voltou a religião de origem, afinal vó Felina tinha sido filha de Maria, congregada Mariana, e ele cedo voltou às missas dominicais

Gostava das excursões, Poços de Caldas, Aparecida, Caverna do Diabo…

Engraçado como na sua imagem para mim está sempre a sorrir. Magro como sempre foi, e atrás dos óculos. Poderia estender-me horas em lembranças… Os jogos de canastra, sua empolgação com as pequenas viagens, com o time de várzea, já citado, do qual foi presidente por muitos anos, e após o jogo chegava com os uniformes para minha tia lavar. De seu jeito calmo, do rádio grande que comprou de presente para Elisete, um motorola, que ficava em cima do bufê, e onde ela ouvia Ely Corrêa enquanto com capricho arrumava a sala, de como aconselhava meu pai, acolhia tio Raul, empolgava os sobrinhos e netos com historietas. Seu caminhar vindo ao longe em passo apreçado para almoçar com a família a tempo de voltar ao emprego…

Noventa anos… 90 anos é muito tempo… Por mais que se goste da vida, e ele gostava, imagino o cansaço, o desconforto do corpo que já não responde como gostaríamos...

Ontem ele se foi… Em mim ele fica. É parte de minhas boas lembranças. Jamais terei como equacionar seus ensinamentos. Sinto inveja de seus sentimentos. Era um homem bom. Cumpriu sua missão.