domingo, 28 de dezembro de 2014

Zés ninguém, e Conceições


E então, numa dessas curvas, que o destino faz ao chegar nas esquinas do tempo e do espaço, você dá de cara – e quase tropeça – com pessoas que chegou a ter algum contato num tempo não tão distante - já que a memória condensa os capítulos da vida e no vale a pena ver de novo mnemônico as cores são nítidas e as vozes não tremulam - , mas que pela variedade de situações vividas já é ancestral, e se dá conta que os playboys do seu tempo de juventude caíram e rolaram na lama de seus próprios atos e escolhas, chafurdaram em obscenidades sociais e tornaram-se sombras tão difusas do que foram um dia, que fazem lembrar a canção... “Quem não os conhece não pode mais ver pra crer, quem jamais os esquece não pode reconhecer.¹”


E assim você se sente agradecido pelo que não teve, por ter sido o forjador de si mesmo, malhado a trabalho, decepções e sonhos, e por ter optado pela retidão, mesmo se o caminho era tortuoso e os atalhos atraíssem com promessas de caminhos sombreados e flores.


¹ – Conceição – Composição de Composição de Dunga e Jair Amorim. Imortalizada na voz de Cauby Peixoto
Foto: Djair - Nuvens, no céu do Brasil

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

A exterioridade das experiências

Assim como os répteis trocam de pele e os pássaros de plumagem, trocamos de círculos.

Desde as primeiras amizades rompidas na infância, cujo ritual, simples, exige dedos mínimos entrelaçados para em seguida os puxar simbolizando um elo rompido, ou indicadores unidos que são cortados pela mão - em palma - do outro, vemos a simbologia de um corte.

A exterioridade das experiências trocadas, que compreende jogos sociais ditos civilizatórios, vai ganhando matizes tênues ou berrantes cores almodóvarianas, de acordo com nosso próprio desenvolvimento e paixão.



Os acordos tácitos aceitados de bom grado – ou à custa de interesses (sexuais, sociais, profissionais) ou meras simpatias, num momento de diferente grau de ebulição já não é mais aceitável, muitas das vezes sequer negociável.

Pequenas grosserias, como atrasos que se repetem, canos, bolos ou tocos, de acordo com a gíria vigente, dados em um evento ao qual se programou e muito frequentemente se deixou de aceitar um novo compromisso, mas ao qual o outro – esse demônio cuja existência se deve apenas à necessidade de infernizar nossas vidas - não deu a mesma importância e desistiu sem dar-se ao trabalho de avisar, pode anunciar o rompimento do bem estar.

Convicções políticas radicais, a grosseria nossa de cada dia, seja a da atenção maior a qualquer um que resolva ligar no celular do interlocutor e a quem se dedica mais que alguns poucos minutos protocolares - e ainda assim tenho dúvidas sobre a tolerância a isso – abandonando-se ali o outro às intempéries do tempo e do espaço, é o suficiente para quebrar o diálogo, sobretudo se o, até então, agente da voz ativa, ouve a conversa do outro e verifica que não há mais assunto ali a ser tratado, e que justifique os maus modos do que lhe está a frente (interlocutor???) e tenta esticar a conversa à exaustão pelo simples vício de falar ao telefone. O prazer proporcionado pelo som , muitas vezes, entrecortado e cheio de ruídos é maior que o da conversa ao vivo, se notando sorrisos e esgares, enrugamentos de testa, e todo e qualquer sinal de atenção, ansiedade e interesse pela conversa.

Watszaap então, envia direto ao primeiro vale do sétimo círculo do inferno, o mesmo onde estão as almas dos que foram violentos contra o próximo.* Se as pessoas ao telefone já se tornam extremamente mal educadas, que dizer daqueles que à sua frente, mesmo à mesa, seja de jantar ou de bar, se dedica a trocar, infinitamente, mensagens, piadinhas e a ver vídeos, que em geral só ele e quem mandou vêem graça, o interlocutor a essa altura olha para a cara daquele com quem deveria trocar ideias, ou... palavras, que fossem, já estaria no lucro; e toma mais um gole de vinho, cerveja, água, ou engole a saliva que lhe vem à boca a fim de fazer descer o sapo que engole para não dar um “piti” e romper ali mesmo de forma explosiva o consórcio de convivência em união pacifica a que se chamou “amizade”!

Sapo engolido, ainda se sorri – quem consegue – quando o outro mostra o vídeo que ele achou engraçado... Ah, as diferenças culturais e circunstâncias... Ai de nós, tirando a força do útero ou dos testículos, ainda conseguimos esboçar um trejeito nos lábios e nos despedimos mais ou menos polidamente sabendo que ali jaz alguma coisa, e que o descompasso leva ao rompimento mais aqui, mais acolá, com a recusa a uma nova sessão de masoquismo que seria um novo encontro.


*Divina Comédia – Dante Alighieri
Foto: Djair - flor do "Bastão do imperador" - jardim da casa de Ubatuba

sábado, 18 de outubro de 2014

Sociedades


Somos sócios
Socialistas, socialites assexuados, assoberbados

Assoreados pelo aço, pelo minério de ferro que nos ferra a todos

Associados, escaneados, escanhoados pela lâmina de aço

a nos raspar o rosto, as axilas, a pélvis,

a tirar pelos e cortar peles, pulsos, impulsos.



Somos sócios, somos símios, somos sonsos,

Somos somados, postos em fila e ferrados se não com ferro em brasa com crachá,

com Registros Gerais – RGs para os íntimos. Somos gado:

Socialistas, socialites os que leem, os que latem, os que apanham, os que batem,

os que manipulam, os que mentem, os que manuseiam...

vidas, carreiras, ferros, documentos, pedaços de carne em busca de um prazer fugaz.



Somos só isso, tudo isso, isso ou aquilo.

A quilo? Ou por peça? Dúzia, por dó ou por dor?

Os que rezam ou que prezam, ou que negam, renegam, desprezam, desejam



Somos pó, de minério de ferro, de rapé, de mico...

Ao pó voltaremos, ao pó preto que vem pelo vento, ao pó branco de giz que ensina o b-a-bá

Ou ao outro que promete brilhos e nos tira dos trilhos:

somos sócios, nesse ócio cansativo que é viver,

que por si só violenta, a si, ao outro, aos ideais e crenças

Somos sós,

e por isso nos refugiamos em poesias, músicas, saraus, caldos quentes, cervejas frias, mingaus.

Somos sócios...

Só isso, e nem por isso brincamos em serviço.


Foto: Djair - Muro pixado à rua Borges Lagoa - V. Clementino - SP

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

O frio dos infernos

Quando Balôla faliu, naqueles dias de miserê, naquele calor moroso e sem avexação de Cezídia, onde só em Macondo, Cuiabá e Teresina se é capaz de sentir igual, ela vendeu seu aparelho de ar condicionado, luxo para poucos naqueles idos anos 1980, para Helena, que então passou a viver na frescura.

A traquitana é viciante para alguns, já comigo nunca fez sucesso – irreconciliáveis, não nos damos bem. Se está em um ônibus interestadual, por exemplo, sempre tem algum acalorado em dias de andropausa a pedir para deixar mais frio; aprendi daí, a das poucas vezes que utilizo o meio, a levar comigo uma cobertinha, uma manta, um lençol, ou o que o valha. Pois valei-me Deus, sou calorento, mas o frio daquilo me entra pelos ossos, irrita, incomoda...

Por vezes, em cinemas, já passei frio por aquilo estar num mínimo do termostato, e me enfureço então não só com os falantes do escuro que teimam em narrar o filme – embora ele seja sonoro e ainda por cima dublado.

Em Maceió, Alagoas, certa vez, foi um inferno em vida as três noites de pousada na praia de Pajussara, que no seu chiquê, acreditado pelos donos e pelos que acham o artefato sinônimo de comodidade e conforto, só dispunha de quartos com o tal ar-condicionado... E eu insone acordava para desligá-lo e dali a pouco, num calor dos diabos, acordava para ligar novamente sem conseguir regular a artimanha do rabudo que deveria também apenas ventilar... Só que não... Talvez por isso parti antes da data prevista e em Penedo, nesse mesmo estado, vibrei não só pelo bolo de aipim que a auxiliar da dona da pousada disse estar a fazer para o café da manhã do dia seguinte, mas principalmente por ter quartos com ventilador, um aparelho se também não sou fã, que aceito a brisa de bom grado quando se faz necessário. Dispensei sem titubear, para o espanto do hospedeiro, os quartos mais chiques do segundo andar, com seu luxo friorento. Sabe-se lá se não me consideraram miserável, que isso pouco me importa, mas acomodei-me no primeiro dos quartos do térreo – sem o dito cujo. Que dias maravilhosos, que noites agradáveis, que cidade fantástica!

Uma época tive um imbecil na sala em que eu trabalhava na qual, graças aos deuses, todos eles, não tinha ar-condicionado. Já o tal sujeito vinha praticamente todos os dias com seu perfume doce e um casaco grosso, pois acalorado que se sentia, tinha que ligar o ventilador, colocando-o fixo, direcionado a ele e ligado no máximo. À hora do almoço, tirava o tal casaco e colocava-o no encosto da cadeira e... não, não desligava o ventilador, saía deixando-o ali, ligado... Era eu então quem o desligava, já que não fazia sentido algum ele ali a girar indefinidamente – afinal, o moço também sempre se atrasava para voltar do almoço. Quando chegava... colocava o casaco e de pronto punha aquelas três hélices em funcionamento.

Zizi, que também não é chegado no bicho, indo ao Rio por missão de trabalho, ficou num hotel cujos quartos todos tinham o tal danado. À noite, sem dormir com um barulho de goteira –
impossível de acontecer naquele meio do prédio com vários andares acima e abaixo – depois de olhar o chuveiro e as torneiras, abre a janela e verifica... Os tais aparelhinhos, um em cima do outro, simetricamente, a formar uma fila indiana, desciam por toda a extensão lateral do edifício... Só então entendeu o recado na porta: “É proibido colocar toalha em cima do ar-condicionado.” Bem, para resolver o caso, pegou um copo no frigobar e o pôs sobre o seu artefato congelante, aparando as gotas que a caixinha de metal barulhenta de cima teimava em mijar em cima da sua, logo abaixo.

Já no Riazor, um hotelzinho modesto no Catete, também no Rio, eu achei bem simpático que o ar fosse ligado da portaria no momento em que se pegava as chaves, já no quarto bem fresquinho, desligava-o para me deliciar com a água farta e quente da ducha abençoada pelo aquecimento central.

Indo há pouco fazer um eletrocardiograma e exame de esteira encontrei a sala geladíssima. Ao comentar com duas auxiliares de enfermagem que conduziriam o exame que elas deviam sair dali doentes com tanto frio, elas de imediato começaram também a amaldiçoar a invenção. , por ser sistema central, nem tinham jeito de reduzir a friagem. Como eu também não gostasse, fizeram uma sabotagem: abriram duas vidraças que pareciam lacradas e fizeram entrar um pouco do abençoado calor que vinha de fora. Agradeci a cumplicidade e lamentaram que tão logo eu saísse teriam que fechar novamente.

É como diz o Jair: se as igrejas vendessem o inferno como um lugar gelado, com certeza convenceriam os fiéis muito mais que com as chamas e os caldeirõezinhos a ferver!

Foto: Internet - Uso livre  - disponível em: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/c/ce/Air_Condition_Unit_Interior_View_USA.jpg

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Uma música na cabeça

E aí, que é uma daquelas madrugadas em que você acorda insone, e com uma música na cabeça, daquelas renitentes, e que não consegue tirar, vai ao banheiro, volta à cama, levanta e vai fazer um chá, e ela ali, a voz da cantora, o mesmo refrão que persiste, insiste, resiste num looping progressivo, repetitivo, exaustivo... Ainda bem, que desta vez, pelo menos a voz e a música são boas: Vanessa da Mata.

“Ainda bem” é o nome da música, “Ainda bem. Que você vive comigo. Porque senão. Como seria esta vida? Sei lá, sei lá..” Pronto, passei o vírus pra você não foi? Um grande amigo sempre que falo que estou com uma música na cabeça se apressa sempre em dizer: “_Então não canta, senão passa pra minha cabeça.” Às vezes não dá pra resistir...

Mas o grande problema é quando a música é ruim, daquelas que você nem gosta, nem da música, do cantor ou do estilo, mas acaba por ouvir como trilha de um filme, seriado, novela, ou porque insistem em tocar na rádio ou algum boçal passa tocando em toda altura no carro, e pronto, você está contaminado.

Com o tempo percebi que só há uma solução: cantarolar uma música boa, a fim de ir matando, substituindo lentamente o vírus auditivo da outra; em geral, quando percebo estar assim infectado, e graças aos céus tem sido cada dia menos vezes, começo a cantarolar “Gota d'água” do Chico. “E qualquer desatenção, faça não...”

Dia desses, um conhecido me falava que está sempre com uma música na cabeça mas que isso era normal uma vez que várias pessoas comentavam com ele que também a tinham, não falei do meu caso, visto que é normal também (risos). E elas realmente estão sempre ali, me acompanham, como se uma trilha sonora estivesse a tocar por meus caminhos. Se for ao Rio de Janeiro, por exemplo, a trilha será sempre Marina, que antes de ser Lima era sempre a trilha sonora da cidade e está impregnada por toda a paisagem da zona daquele (bem) amarrotado, mas ainda belo, cartão postal.

E assim como ela, músicas que falam sobre lugares, cidades, praias, estradas, rios, vão fazendo fundo ao passar por eles, à sua simples menção, e assim se perpetuam, sendo muitas nas vozes de meu pai, que cantava, de minha mãe, tias e amigos que as cantarolavam.

Se Glauber tinha sempre uma ideia na cabeça, eu que não as tenho assim tão geniais, estou sempre com algum pensamento e não entendo quando uma pessoa diz que não estava pensando em nada. É possível? Bem, se não estou a pensar em nada, estou com uma música na cabeça, e então... estava sim a pensar. A cantar mentalmente, canto, logo sinto.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Vitória

           "Vitória é uma prostituta finíssima. Ela aprecia o mar afagando seus pés e despreza muita gente que a rodeia e cobiça. Mas ela se deixa penetrar aos pouquinhos, de preferência os clientes com muito dinheiro."

Jair Leal Piantino


Mas a despeito do que nos diz o autor da quadrinha, temos o fato que visualizar o horizonte faz toda a diferença.

Foi hoje o primeiro banho de mar; não obstante o ventinho fresco que o oceano soprava em direção a meu peito, encarei o mar de frente, entrei... A água morna beijando meus pés acariciava os tornozelos, as pernas, massageando suas batatas num irrecusável convite que em nada lembrava o frio da água de outras praias, ou mesmo dela na tentativa anterior ainda sob tempo não muito seguro, e na ansiedade de quem vem de onde só há prédios e ruas, de onde não se dá noticia de horizontes e o cinza predomina...

Ao longe, a terceira ponte, um pouco antes do Convento da Penha que repousando sobre o rochedo desde 1530 abençoa essas terras. Ainda bem, pois perigava nos dias de hoje abrigar uma das centenas de miniaturas do redentor que se espalharam por essas terras brasilis. Ou pior ainda, um monumento ao mau gosto, como a esverdeada estátua da liberdade miniaturizada que me envergonhou ao passar por ela no contorno de Goiânia... Seria aquilo efeito do césio na mente de alguém?, e pronto, aí já tem o comentário preconceituoso para me acusar de tal.

Mas, voltando à paisagem que avistava da praia, ao lado de casa, aqui, Jardim Camburi, também via verdes remanescentes de serras de Mata Atlântica que teimam em salpicar a cor do jade, do musgo, da cana, aqui, ali e acolá, depois do mar, que hoje estava azulado.

Já se a vista vai para à direita prédios, mata do aeroporto, mas antes deles quilômetros de areia e mar num contorno bonito em degradê: a cor do mar, da areia, de coqueiros e chapéus de sol e outras vegetações que antecedem o calçadão, a ciclovia, onde capixabas e agregados como eu caminham, correm, andam de bicicleta, patins, skates ou simplesmente flanam aproveitando o calor, a brisa, a paisagem.

Olhando para o outro lado, ainda bem pouco explorado, o viaduto que conduz à mineradora e sob o qual, em linha reta, seguindo a ciclovia, vai dar em minha rua, um pouco antes do Jardim Botânico onde um enorme lago verde, restaurante de garças, Martíns pescadores e outras aves, vira depois um pequeno riacho que se junta à água do mar como se ali fosse preciso mais uma corzinha, toque nada sutil da paleta do pintor da tela que apenas por capricho quis por ali um outro tom de verde, só para mostrar como sabe mesclar e combinar as tintas. E depois dele, a sede da grande empresa, passada a iniciativa privada por um governo que não deixou saudades, e nem disse para onde foi o dinheiro apurado com a venda daquela que já foi a maior empresa do país. Num edifício grená entre a mata verde impõe sua presença aumentada com o apito do trem de minério, e pelo gigantismo dos navios ancorados em seu porto, que fazem fila no oceano, e assim voltamos de novo ao mar.

Atrás de mim areia, depois a escada onde se sobe ao calçadão, não sem antes parar para tomar a ducha para tirar o sal; subindo a escada, os botecos... Peixe frito, cerveja... Agora não, à boca da noite talvez, depois da caminhada vespertina...

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Dias de mudança

E aí vem a mudança provar-me o quanto sou apegado; um apego triste e enraizado que me tira o sono ao pensar nos pequenos objetos acumulados, recordações de viagens, as cerâmicas, as porcelanas, o artesanato em madeira e vidro...

Tantas vezes já mudei deixando tudo para trás! Mas também nunca fiquei tanto tempo em um mesmo lugar, e desta vez 18 anos... Quatro casas diferentes, a cada vez praticamente dobrava-se de tamanho, logo com muito mais espaço para acumular coisas; e tomem-lhe vasos e jardineiras que formaram uma mini-selva, com as flores que deram, o molde dos vegetais obedecendo as podas, os vasos ganhados, as cores, os matizes...

Os presentes, as pequenas lembranças, dados com carinho pelos amigos, recordações de uma vida... Uns em lugares de destaque, outros guardados para a próxima troca de móveis nos espaços quando se redescobre o objeto e o olhar sobre ele se renova, e aí então vem ele ao pódio enquanto se guarda outro para que dai a meses, um ano quem sabe, num novo giro da disposição mobiliária ele venha novamente emergindo do armário tomar seu lugar ao centro de uma cristaleira ou sobre o buffet...

As panelas de barro, as sopeiras e copos, todos usados, não são enfeite, são objetos de uso, onde cozinhei ou servi com carinho nos jantares, almoços, reuniões com gente querida. Têm sua própria história as taças que beijaram as bocas que sorviam um vinho, os lábios que lentamente deixavam vir boca a dentro um trago de cerveja, um gole de água... Pratos que testemunharam gulas, quadros que nas paredes, mudos, ouviram risadas e foram testemunhas discretas de inconfidências, inconsistências e claro, porque não?, maledicências.

O galinho de Barcelos que vem de Lisboa, o sino de vento de cerâmica do Piauí, o qual seu Verdou, o artesão de conversa frouxa e agradável já não pode mais fazer igual por ter batido a cacholeta já há tempos. A obra me inspira carinho por ele cada vez que a olho, relembrando-me de Ana, a esposa que a embalara flor por flor, com cuidado e carinho, e me traz preocupação com seu destino, quando na última visita, o marido já tendo partido, ela era a tristeza personificada ao atualizar-me sobre o falecimento.

Foto: Djair - Rodovia Fernão Dias
O banco de madeira feito por 'compadre' Herculano lá nas Minas Gerais, sob encomenda, e que assim como as floreiras de madeira viajou num carro que não tenho mais, também ele presenciou tantos casos e gargalhadas quando o fomos buscar com seu cada entalhe único, segredando os calos na mão do artista.

A namoradeira, assim como as bonecas de cerâmica do Jequitinhonha, tornam a casa mais mineira, uma comprada na primeira de tantas idas a S. João d'el Rey, onde um dia sonhei morar, e que se perpetua assim como a lembrança do pão de queijo recheado com pernil, comido numa padaria que não existe mais, junto com Dásia e o beato Zé Maria. As segundas, adquiridas em Diamantina, rumo à casa de Xica e que contrastam com as porcelanas de Sevilha, tornando única a combinação que traz o mobile de bonecas de pano da Paraíba e bichinhos de cerâmica que trouxe de Bonito – afinal o Mato Grosso, o do Sul, também está representado, e assim cada viagem se tornou tangível, se perpetua nas lembranças, que trouxe daqui, dali e de acolá.

Artefatos de palha dos índios do Pará, lembranças de José Luís, que também já partiu deixando saudades enormes de seu sorriso jocoso, assim como Rafael que me fez chorar o choro mais pungido dos últimos tempos quando se foi, e cujas taças já faz 08 anos que nos deu. Do mesmo modo, a biografia de Carmem Miranda – e aí vem a senda dos livros, os que li e amei, que grifei, e os que ainda não li, os catálogos de museus, de artistas, os livros com dedicatórias de amigos, de autores apreciados... As bonecas e panos de Africa que Tânia nos deu de lá, canecas de porcelanas e de cerâmicas dadas por Ana Bracht, por Claudia, copos de alumínio dados por minha mãe e nos quais Antônio e Elenice fazem questão de tomar água da talha quando vêm cá, a sopeira que foi da avó de Ricardina e tantos suvenires que é melhor parar de citar quem trouxe e de onde, antes que injustice alguém. Então que se sintam já citados e homenageados nas peças que serão sim guardadas com carinho, levadas junto comigo, ainda que por um tempo permaneçam nas caixas.

Como não ter apego se eles são a materialização de sentimentos, de lembranças, de vida? Sim, eu sou realmente uma pessoa apegada. Tanto e quanto que é hora de parar esse texto para não ir citando os Tsurus e outras dobraduras, e coisinhas e trocinhos e miniaturas outras e o texto não tenha fim e se torne ainda mais maçante, afinal a quem podem interessar minhas lembranças? Apenas me deixem dizer por fim que as pedras, tantas que são incontáveis, irão também, trazidas de todo canto, como as que Ana e Fran me trouxeram de Barcelona antes de eu a visitar, as que Jair me trouxe da praça Vermelha com medo de os russos cismarem com isso, como as que catei no Parnaíba, rio abaixo, rio arriba, ou me abaixei em Floripa para catar.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

O feio e o fake.

Você vê nas redes sociais fotos de algumas pessoas em poses estudadas, lê as legendas trabalhadas e compara com seu comportamento, com sua linha de pensamento expressada no modus operandi... Bate uma tristeza... Uma preguiça, e até uma irritação, ao olhar sorrisos coniventes com ideologias expressadas ali e que nada tem a ver com a prática. 

Foto: Jair Leal Piantino
Conteúdos forçados a fim de mostrar uma inteligência, uma opinião formada sobre tudo, e que muitas vezes, para não dizer a maioria delas, não corresponde àquilo que o discurso prega, o discurso pelas minorias, contra o preconceito, e no gestual, no dia a dia, você vê que suas opções não condizem com aquilo que a foto ou o texto tentam mostrar. Se Caetano já dizia há tempos que “de perto ninguém é normal”, em tempos de redes sociais, onde todos pretensamente geram conteúdo, emitem opiniões sólidas e profundas que quando contestadas ou contextualizadas têm a espessura de uma membrana, que termo definiria essa anormalidade?

Sempre houve e sempre haverá gostos e gestos conflitantes em cada um de nós, contradições, certezas afirmadas que no fundo estão repletas de dúvidas, mas a virtualização e a facilidade de publicação, disseminação e obsessiva afirmação e defesa dessas afirmações, ainda que não se tenha aprofundado uma análise sobre o tema ao qual se defende, não cria uma nova patologia psicológica? Exagero, talvez? Pode ser, afinal, quem está livre deles, mas se Eva tinha três faces, sem ter um livro delas, o que se diz quando se percebe que virtualmente aquela face apresentada na rede social não corresponde à face real?

Os pensamentos ali disseminados buscam o quê? Mostrar quem se é e o que se sente verdadeiramente?, ou apenas mostrar ao mundo que se é culto, inteligente, sagaz? Cheio de sentimentos nobres e de convicções políticas profundamente embasados?

Hoje para ser “fake”, usando o termo popular para perfis falsos, não é preciso fotos forjadas com imagens que não a do dono do perfil, nem a criação elaborada de uma personagem, muita gente que hoje olhasse a própria página na rede não se reconheceria tão forjada e moldada em formas diferentes de suas realidades, convicções e modo de vida.


sexta-feira, 27 de junho de 2014

As amigas da titia...



             Pois bem, tia Daça tinha várias outras amigas além de Socorrinha, a do olhar lânguido a qual me referi no último texto - se você segue o blog vai lembrar... -,  embora aquela fosse sua melhor amiga à época, a ponto de quando ela se casou ter sido convidada por minha tia a batizar seu primeiro filho, convite feito, minha tia morando em S. Luis do Maranhão, Socorrinha em Barro Duro, interior do Piauí... Ambas já casadas... O batismo não saiu e Danilson teve outra madrinha e padrinho que desconheço, por esse tempo eu já tinha retornado a São Paulo, terra de meu pai.

            Mas eis que naqueles dias em Teresina - onde passamos pouco mais de um ano, já que a obra que meu progenitor havia ido chefiar teve sua conclusão - nossa casa era frequentada por várias flores amigas de minha tia, sempre que vinham a Teresina. Socorrinha era a única que morava lá mesmo, fora para estudar e fazia o  curso de pedagogia, o que lhe valeu mais tarde a direção de uma escola em Barro Duro.

           Ely era uma das mais bonitas, e me lembrava Gislaine, uma prima por parte de pai, que morava em Santos – SP, a quem na infância eu dizia que seria com quem iria me casar. Ely, de cabelos castanhos, compridos, seios fartos sem descambar ao exagero, tinha até mesmo os dentes bem pronunciados de Gislaine. Lembro que em uma das visitas insistiu ela mesma de passar o café que tomávamos à tardinha. Cheia de autos elogios sobre sua infusão do pó de grãos, meteu-se à cozinha e nos veio com seu líquido marrom. Tomamos... Daí a pouco Ely se foi, já que voltava a sua cidade dali a pouco. Vejo logo em seguida minha mãe levantar-se e dizer: _Bom, agora vamos tomar um café de verdade, que esse mijo de vaca da Ely não está com nada. E a gargalhada foi geral.

            Se Ely na sua fartura e Socorrinha em sua languidez sensual eram belas, Mirta era uma desgraça, coitadinha!, feinha coitada, feinha que doía, lembrava a finada Aracy de Almeida com seus óculos escuros  enormes que mais a enfeiavam, e observem que: a época, não existiam esses modelos medonhos de hoje que deixam as pessoas com cara de alienígena de filme da sessão da tarde, mas enfim, era feia a Mirta. Pra ajudar não era simpática, ou eu teria ao menos essa desculpa e talvez entrasse num dilema machadiano, se feia porque tão simpática? Se tão simpática porque feia? Mas não, ela não era...

Flor do baile - Foto: Djair
            Quiseram o destino e o tesão que Mirta sucumbisse ao charme de um rapaz lá de sua cidade, e assim caída em tentação, deixou-se deflorar. Pois bem, no mal-me-quer, bem-me-quer, a pétala se foi... Os irmãos nem quiseram saber se foi ela quem deu em cima, ou se deu embaixo, vá lá se saber... O fato é que chegaram juntos, tomando dores e preservando a honra e cercando o deflorador, disseram apenas: "_Ou casa, ou os ovos!"

            Nunca soube de ninguém, que nesses casos, escolhesse a castração... Pois muito bem, Mirta casou! Não importa o quanto durou, nem que o marido tenha fugido com outra, tempos depois. Casou!

domingo, 22 de junho de 2014

Um dia de Flamengo e Ríver

      E quando moramos em Teresina, naquele longínquo 1979, quiseram o destino e a vontade dela, que minha tia Dacilene, a quem todos chamam até hoje Daça, vir passar uns tempos conosco. Naquele final de década eu cursava a sexta série, em uma escola cuja farda era camisa branca e calça de mescla. À tarde, depois de chegar do colégio, banho tomado, sentávamos à calçada, à sombra, e por vezes colocávamos ali a televisão, abrigando-nos assim daquele calor digno de Macondo, que só García Márquez saberia descrever tão bem. Ali, vez por outra, um passante parava à rua para assistir ali um pedaço do capítulo da novela, ali comprávamos o leite por volta das 18:00hsdo moço que trazia os galões na bicicleta, e os pães e broas, manuês e bolos que outros traziam em bicicletas ou dos que vinham a pé trazendo em cestos bolo de fubá, bolo frito e toda sorte de quitandas. Já era praxe e venda garantida. Na casa ao lado, D. Raimunda fazia o mesmo, embora sua TV não saísse da sala.

      Naquele final de década, o Flamengo do Rio tinha Zico, e o Flamengo do Piauí, tinha... tinha... bem, tinha lá seus jogadores. Fui com tia Daça e Socorrinha, uma de suas amigas, que a mim causava sempre uma impressão... Forte... O olhar lânguido, os cabelos cacheados e a pele muito clara que contrastava com o castanho escuro daqueles cabelos, pequena estatura, voz suave... Bem, fomos a uma das partidas; como diz minha mãe: se o espirito não me mente e a verdade não me falha, o jogo era com o Ríver. E fomos de camisetas, rubro negras, bandeira em punho, enorme, cuja haste era de talo de buriti, leve e firme.

     No Albertão, eu ainda não conhecia Morumbi, nem qualquer outro estádio, a imensidão da torcida, toda empunhada com as bandeiras. No intervalo, refrigerante e coxinha; foi onde vi pela primeira vez os desenhos da genitália humana, que o populacho reproduz pelas paredes e portas, muros e onde mais lhes caiba a mão e o giz, caneta ou pincel, por seu simples desejo ou pelo pouco uso que faz deles, igualzinhos aos que Pedro Nava descreve em seu “Baú de ossos”, com a diferença de que ele as vê, se não me trai a memória, no Maracanã. E surpresa, mas nem tanto, ele ainda menino, eu também, reconhecemos nas tais figuras a tal tesoura mal desenhada, o triângulo com riscos que me lembrava apenas o símbolo que tinha na porta da loja maçônica, não trazendo quaisquer outras considerações ao menino de 12 anos. Lembro que comentei da tesoura e minha tia, como o tio de Nava, confirmava que o objeto cortante era mal desenhado.

      Volta à arquibancada, e que vexame!, não lembro de quanto, só que perdíamos feio, e nem cheguei a ver que ali estava também meu pai, com uma das muitas amantes que teve durante a vida; só soube disto por ouvir conversas depois... Mas antes disso minha tia, a pretexto de que estávamos mesmo perdendo, chamou-me a ir embora, mesmo sem terminar o jogo, afinal, a saída era muito cheia de gente e seria complicado, melhor já ir embora mesmo. E fomos...

      Ao escolher o táxi, já que o jogo ainda não tinha terminado e eles abundavam à saída do estádio, lembro que escolheram o de um rapaz bonito; é, tia Daça e Socorrinha eram moças e à época não consta que tivessem namorados. Além de que, era só pra olhar mesmo. Pegamos o carro do moço, tia Daça bufando pela derrota me mandava enrolar e esconder a bandeira que eu teimava em trazer aberta. Pois bem, bandeira enrolada, entramos no carro e... o tal moço bonito era um anti-flamenguista ferrenho, ou dizia sê-lo a fim de fazer charme, e assim fomos até em casa ouvindo o sarro que ele teimava em mais tirar, quando mais amuadas as moças ficavam.

      Mas que foi um belo passeio, isso foi!


 Foto: Internet - Estádio Governador Alberto Tavares Silva "Albertão"
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sexta-feira, 13 de junho de 2014

Palavrinhas sobre palavrões



“Há maneiras adequadas de discordar do governo e do governante. Defender ideias contrárias é uma delas. Argumentar com sobriedade é importante para concordar e para discordar. A vaia e as grosseiras palavras gritadas no estádio contra a presidente da República, Dilma, envergonharam todos os brasileiros, até os que não gostam dela.”

Luiz Otávio Pereira



"Um povo que se julga culto, educado, uma gente de bem. E não respeitou a Chefe de Estado num evento sob holofote mundial. Chefe esta que foi eleita democraticamente.

Juro. Pra mim é tão claro quanto o sol a tentativa de furto do Estado Democrático de Direito”

Anna Mazzeo



Ambas as sentenças, publicadas no facebook, pelos dois amigos, refletem a educação, digo a absoluta falta dela, embora grande parte dos que o façam clame justamente por melhoras na educação; afinal, para esses, a educação formal é aquela adquirida em bancos escolares e cadeiras acadêmicas.

E por falar em cadeiras acadêmicas, estou engasgado, há meses, mas especificamente desde março, com a capa da revista Cult, na qual vinha estampada a professora da UFRJ, Ivana Bentes, senhora com quem tive contato profissional há alguns anos. Gentil, simpática, educada e cordial, tal contato valeu-me inclusive agradecimento em seu livro: Glauber Rocha: Cartas ao mundo. Pois bem, na capa a professora trazia o dedo médio em riste.

Não comprei a revista, aliás, desde então deixei de comprar, achei desrespeitoso, no meu ver esse gesto, que não cai bem nem a homens nem a mulheres (se aqueles, tendem a remeter à ideia de seus pênis, elas desejariam demonstrar seus clitóris?). O título da matéria era: “Respeitosamente Vândala”! Sério mesmo, que alguém pense ser respeitoso empunhando uma ereção do artelho central de uma das mãos? Isto à capa de uma revista que fica exposta nas bancas à vista de todo e qualquer passante? Onde somos obrigados a ver ainda que não quiséssemos? E era o que acontecia a cada hora de almoço onde, para chegar ao restaurante cotidiano, passava em frente à banca... Realmente eu tinha raiva cada vez que via a tal capa. Não tive desejos de ler o que ela tinha a dizer. Respeitosamente, declino.

Dia destes, um outro colega de rede social, posta também, assim, gratuitamente, o mesmo gesto: será que acha engraçado? Moderno? Rebelde? Não sei... Apenas cliquei o não quero ver isto. Afinal de contas, ainda valia manter-lhe ali apesar da reprodução do gesto. E ali eu tinha essa opção, diferente da capa da revista estendida à altura dos olhos, na banca.

E assim, vemos e ouvimos, os “vai tomar em tal lugar”, e outros mais de naipes semelhantes, em estádios, no metrô, na rua... Não que eu não fale palavrões, falo, embora evite esses, e ainda mais assim, gratuitamente, pelo simples prazer de mostrar-se boçal ou indignada, quando parece mesmo querer aparecer a qualquer custo. 

Foto:  A capa da revista citada no texto, com edição feita por mim, a fim de não propalar o tal gesto.