domingo, 28 de abril de 2019

O Filho Gay


O amor ao filho mingua conforme ele deixa de corresponder às expectativas dos fornecedores de gametas que o originaram. Talvez porque vejam por aí que não terão controle algum sobre este, mas ainda assim tentam. À maioria das vezes, as histórias de “criar filho para o mundo”; “ele será o que quiser”, são balelas inúteis e discursos usados para atenuar sua incapacidade de controle desse casal de gametas feito carne e posto ao mundo, alguns arrancados literalmente a fórceps...

Grafite em muro no Faro - Portugal
O amor, ou a maior parcela dele, seja lá o que isso seja, já que cada um tem sua ideia própria de amor e de reagir ao excesso ou falta dele, é destinado, em caso de mais de um, ao filho que se deixa controlar, ser amoldado com os princípios e interesses dos criadores, e assim, perante a vergonha fundamental dos pais, o amor é condicionado àquele que mostra-se mais receptivo às suas referências, o de comportamento mais aceitável dentro dos círculos sociais desses pais, afinal são criados à sua imagem e semelhança, como já ouvi isso em algum lugar...

O pai sempre irá gostar mais do filho bêbado e inútil, mas hétero, que de um filho gay, por mais “certo na vida” que este tenha dado. A mãe, por seu turno, apesar de em geral reconhecer mais de si, ou até por isso, no filho mais frágil, vai orgulhar-se do reprodutor da família, pois alguém tem que ser bom em algo! Muitas vezes, essa mãe fragilizada pelo próprio companheiro, nega a fragilidade do filho, porque ela própria odeia ser frágil. E não, não estereotipamos aqui todos os gays como frágeis e carentes de proteção, mas isso é inegável em uma grande parcela de certa faixa etária. Até por conta de muitos nunca saírem do armário, embora todos saibam que estão com a mão à maçaneta. E assim, aceitar-se, assumir-se, é mesmo uma forma de fragilidade, de autoproteção, de medo.

A fragilização é um componente a mais das vezes presente durante toda uma vida, desde o pai que acredita que sendo mais autoritário vai servir de exemplo de macheza, sem se perguntar se o filho não quer é justamente fugir desse exemplo, ser o mais diferente possível desse pai. Tias e tios, primos e vizinhos que lançam olhares de contestação ou mesmo condescendentes de afeto, mas, conscientes de que há ali algo errado, que não corresponde ao esperado... E as crianças, então? Ah, as crianças sabem ser cruéis e discriminatórias, sim. Crianças são bonitinhas (nem sempre), o que é diferente de serem boazinhas. A mãe fragilizada não reconhece a fragilidade do filho, o quanto ele é dependente de seu afeto e exige dele a fortaleza que ela não teve.

Não existe isso de “gosto de todos da mesma forma”, isso é balela, uma impossibilidade tangível. Pode-se dar os mesmos presentes, a mesma educação (que por mais semelhante será diferente até por uma questão temporal), mas a atenção, o afeto e as demonstrações de orgulho e apreço, ah, isso é que não! Estas estarão sempre reservadas, com maior ou menor grau de discrição, ao que mais corresponde aos valores dos pais. Valores morais, religiosos, reprodutivos, no que tange à perpetuação desses em netos, bisnetos, com os quais incorrerão nos mesmos erros. Se é que isso é um erro, por ser natural do ser humano ter suas preferências e simpatias. Aceitar é bem diferente de “amar” ou “respeitar” e depender e/ou reconhecer é ainda tão diferente quanto.

Ao filho também é dolorida a constatação do “ser diferente”, do ser menos amado, da derrubada do mito da perfeição dos pais. E a desconstrução deles é mesmo dolorosa, demorada; é um trabalho longo, tedioso, que passa pela negação, raiva, desprezo, culpa. Mas, uma vez desconstruídos, nem Picasso dirá onde eles têm olhos, boca, nariz... Talvez não restem mágoas, pois assim como não houve amor suficiente de uma parte – e que talvez já não seja mais necessário, do outro lado também foi minimizado o sentimento.

Mágoas, dores, alegações de amor, de cuidados e carinho, não serão mais equacionados num teorema positivo. A verdade é dolorida, mas as feridas nos joelhos, na infância, também são; essas, primeiro param de sangrar, com o tempo deixam de ser úmidas e criam a grossa casca escura que se quebra, solta-se, às vezes volta a ter um pouco de sangue e pus, mas logo se reveste de nova pele, a princípio rósea, fina, mas que logo se integra de tal forma ao resto do tecido que ninguém repara o dano, pelo menos externo, pois bem que um dia a dor na rótula torna a aparecer. Assim são as feridas no ego, na alma... Na mente também irão cicatrizar, e cicatrizar também é diferente de curar – e aí se possibilita a convivência com elas.