Pela manhã no
ônibus um velho senhor, em pé, visivelmente
alterado, falava em altos brados retumbantes, sem parar. Contava sobre o filho
marginal e sobre as próprias tentativas de suicídio, dizendo que queria morrer,
mas Deus não deixava, e que era a fé que o salvava, pois já pulara do terceiro
andar e não morreu – só não explicava se a fé era tanta porque não a usava para
melhorar a própria situação... mas enfim, contava casos e mais casos a duas
senhoras que vinham também nos bancos especiais, do outro lado do corredor, o
lado onde ele se apoiava. Uma determinada hora a mais nova começou a responder
que ele deveria tentar com mais ênfase, em vez de pular o terceiro andar que se
jogasse do último, que aí dava certo. Ele bradando falou da vez que se jogou na
frente do carro e ela imediatamente redarguiu: mas não faz uma coisa dessas,
pula na frente do metrô que dá mais certo, carro dá tempo de frear, metrô é
tiro e queda. Aí ele falou que o filho já colocara racumim em sua comida, e nem
assim ele tinha morrido, e ela: Ah, mas porque ele não usou chumbinho?
Logo em
seguida a mulher desceu, desejando-lhe sorte na próxima vez.
O tal senhor
sentou-se finalmente, aquietou-se e dormiu...
***
Estávamos em
Teresina (PI), naquele calor de mais de quarenta graus, esperávamos o ônibus,
que chegou cheio (nada que se compare ao Jardim Miriam – Vila Gomes, linha da
cidade de SP que é capaz de curar a carência da mais rejeitada e complexada das
criaturas). No segundo banco logo à frente duas senhoras, bastante acima do
peso, espremiam-se no banco insuficiente para seus tamanhos, todos passando por
elas para tomar lugar depois do cobrador, onde estava mais vazio. Eis que uma
delas, a do corredor vira-se para a outra e começa o comentário:
“_Olha fulana,
eu detesto pegar ônibus essa hora, e todo mundo grosando na gente, se esfregando,
ou são essas mulheres das bundonas, ou esses velhos das barrigonas, ou então
são esses rapazes das rolonas.”
***
Fazia um
infernal calor em Recife por aqueles dias. Sempre tive a impressão que a
“Veneza brasileira”, ou como dizem seus críticos moradores “a Venérea
brasileira”, tem mania de grandeza: tem a “Maior Rodoviária do Nordeste”, mas
fica em Jaboatão dos Guararapes; segundo maior Centro de Convenções do Brasil,
mas em Olinda; a Avenida Caxangá, segunda maior avenida em linha reta da América
Latina, e por aí vai...
Bem, mas era um calor imenso e estávamos na Av. Conde
da Boa Vista, dentro do ônibus lotado, que já tinha percorrido a Caxangá desde
a Cidade Universitária e ia com destino a Boa Viagem, quando ele quebrou, na
terceira faixa da avenida. Uma reclamação, murmúrios, brados, ranger de dentes
e o motorista não queria abrir as portas por estar na terceira faixa... Uns
alegavam que tinha que abrir pois se quebrou... Ele argumentava que tinha que
dar um jeito de encostar... Foi quando algum gaiato lá no fundo gritou: “Abre
logo motorista, que tá pegando fogo aqui atrás...” O espírito zombeteiro não
precisou repetir uma segunda vez, o pânico instalou-se e em dois minutos as
portas foram “levadas no peito” pelos passageiros, e só não teve feridos porque
o sinal estava fechado...
***
Esperávamos o
ônibus em frente ao terminal intermunicipal de ônibus de Teresina, aquele lugar
que a julgar pelo calor, deve estar bem perto do inferno. No ponto de ônibus um
bêbado a prosear com quem lhe desse atenção enchia o saco e os ovários de quem
tinha que esperar condução, e nessas situações é que o transporte coletivo
parece falhar de vez, mesmo numa cidade planejada como aquela.
Como naqueles
anos 1990, muitos rapazes vinham a São Paulo, assim como iam a Rio, Recife,
Brasília em busca de melhores condições de trabalho, aliás, de trabalho,
qualquer que fosse, afinal naquele segundo reinado de Fernando Segundo, o
Henrique, emprego era coisa um tanto rara por aqueles lados. Mas enfim, eles
vinham e depois de um ano, ou até menos, voltavam com jeans novos, óculos
estilo rayban legítimo, das bancas da Av. S. João ou Ipiranga, e...
inevitavelmente levavam com eles um enorme rádio-gravador com dois decks,
àqueles tempos, última moda em aparelho de som, pelo menos no interior do
nordeste e em AE Carvalho e Baixada Fluminense. Era o passaporte de volta:
depois de três meses, o dinheiro acabava, eles vendiam os gravadores e
compravam a passagem para ir de novo...
Um deles chega
com o som no ombro, enorme, ligado. E o bêbado acha logo interlocutor:
“Muito bonito
o seu aparelho de som!”
“Obrigado!”
“Muito bonito mesmo! Mas pode abaixar que
ninguém aqui tá gostando dessas músicas suas aí não... Pode ir baixando, que
ninguém aqui tem ouvido de penico não...”
Sabe-se lá
porquê o rapaz obedeceu, possivelmente para evitar confusões, ou mesmo por
sentir-se constrangido com a reprimenda do bêbado. Logo veio seu ônibus e
foi-se ele embora com seu potente equipamento. Nisso o bebum olha e vê outro
rapaz, cheio de pulseiras e colares dourados, e então puxa papo novamente:
“Tá vindo da
Serra Pelada é?”
“Não é de lá
não, mas é de um outro garimpo, sim senhor.”
E o “pudim de
cana” estende a conversa:
“Muito
brilhosas essas suas pulseiras e esses seus anéis...”
“Obrigado!”
“Você não quer
trocar essas suas correntes e pulseiras aí por um casal de cachorros doidos que
eu tenho lá em casa?”
“Moço, o
senhor sabe por acaso quanto custa só uma dessas correntes aqui?”
“Ah, é? E por
acaso você sabe quanto valia meu casal de cachorros loucos antes de ficarem
doidos?”
Nisso chegou
meu ônibus e fiquei para sempre sem saber o fim da estória...
Dá licença,
que vou descer no próximo!
Foto: Bonde, ainda usado como meio de transporte em Lisboa, cidade com eficiente setor de transporte coletivo, ônibus, barco, bonde, trens, metrô, um não substitui o outro, soma-se ao outro.