terça-feira, 14 de maio de 2019

Animalidades e Inanimações.


“Sou um homem, sou um bicho, sou uma mulher...” A voz de Ney Matogrosso afaga-me os ouvidos com esses versos, nos quais ele continua: “sou a mesa e as cadeiras desse cabaré...”
Pois bem, no último texto, falamos justamente dessa dualidade do ser humano, ser homem, ser bicho... Negar um para ser o outro... Ser muito mais bicho que humano. Terminei o texto e fiquei com essa trilha sonora na cabeça. E, junto, uma sensação de que não terminou.
Lembrança de uma amiga que preocupava-se muito com a doutrina espírita da reencarnação pois não queria de forma alguma já ter sido cachorro. Uma vez, numa destas reuniões, fez a pergunta e lhe responderam que não, que bicho nunca vira gente, gente nunca foi bicho... Será? Correntes do hinduísmo, que é muito mais antigo que o cristianismo, dizem que sim. E mais: que podes voltar a sê-lo. Eu, em verdade, acredito mais nessa corrente que permite a involução. Aliás, vejo pessoas próximas e políticos distantes (não tenho muita proximidade com esse tipo de besta), voltando como asnos ou feras peçonhentas.
Tenho amigos tão carinhosos com bichos que sempre dizia: quero voltar gato do Zé Luís ou da Fernanda.
Ora, os animais humanizados demonstram muito mais respeito e carinho pelos que lhe são próximos (humanos e outro bichos) que os humanos entre si. Há ciúmes, mas não competições sujas por promoções de empregos, por carinhos maternos e paternos, por heranças...
Ser homem, ser bicho, ser mulher... Ser um objeto inanimado... O que somos durante todas as horas de nossa existência? As impaciências, rangeres de dentes, berros, afagos, inércia... Quantas máscaras... e nem todas exatamente humanas. Como os bichos, sentimos fome, frio, calor, cansaço. Cagamos, urinamos e nos sentimos amados ou rejeitados. Rejeitamos também, como cães que cismam com determinada pessoa e nada os faz calarem-se ou serem amistosos. Gatos que se escondem de gente ou pássaros e marimbondos que vêm fazer suas casas nas varandas das casas, como a pedir proteção.
Foto: Djair *
E o ser homem e mulher, o desejo do macho de sobrepor-se, e mesmo de ter o prazer sexual e lidar mal com a rejeição do sexo oposto (ou até do mesmo sexo), não é um impulso animalesco que tende muitas vezes a deixar a racionalidade e fazer com que certos tipos partam para a agressividade e o desrespeito? Preferiria eu voltar como um cão amoroso.
Em uma canção de Caetano, ele fala sobre “o macho adulto branco sempre no comando”. A perpetuação desse comando não é uma forma de territorialidade de certas espécies? Como os que banem os outros machos do bando logo após esses amadurecerem sexualmente?
Um tio, ótima pessoa, afetuoso, cordial e aparentemente sensato, tinha por preceito que ao completar dezoito anos os filhos tinham que sair de casa. De qualquer forma. O instinto materno de minha tia, da proteção aos filhos, levou-os à separação por isso. Pensamentos e instintos puramente humanos? Quem equaciona essas sensações, modus vivendi e decisões? Quem tem razão, o homem, o bicho, a mulher? Nem com muito álcool nos copos sobre a mesa, e sentados às cadeiras de um cabaré, poderíamos (pelo menos, eu não) chegar a deduzir esse teorema.
A grande invenção criacionista deixa de fora as evoluções animais e nos coloca num patamar próximo a um criador, sua imagem e semelhança. O quanto de animal teria essa força criadora? No Budismo, no final, nos fundimos com o todo, alguns xamãs indígenas prestam culto aos espíritos animais e a eles incorporam... A religiosidade, criação humana, é tão diversa quanto as espécies animais, e olhe lá, nem todas elas estão catalogadas, e das que estão, muitas foram vistas pouquíssimas vezes e por um número reduzidíssimo de pessoas. Em moda, atualmente, anda o termo pessoa tóxica... Seriam as pessoas nocivas? Mas o termo bem poderia ser vírus, que estão no reino animal, como outrora era comum chamar o fulano que não largava o “pé” do outro de carrapato. E quando a pessoa é verborrágica? Fala mais que papagaio? Parecem umas galinhas?
Um amigo querido, quando quer dizer que uma pessoa é feia, diz logo: “Encontrei fulano, tá um “camelo”. E antes que perguntem-me porque camelo, como já o fizeram, visualizem a face de um camelo, ruminando...
Reinaldo, na sexta série, era chamado de porquinho, não só pela camisa nem sempre limpa, mas também por ser gordinho. A filha da professora Isamar, um dia que foi com ela ao colégio, riu-se muito e falou à mãe do apelido do colega, mas emendou: “Ele é feio, parece uma menina.” Não sei o que a levou ao fazer o comentário, mas foi um dia de risada.
Dona Maria, da época da piscicultura, se referia a uma vizinha da fazenda como tendo corpo de abóbora.
E assim seguimos próximos dos animais, dos objetos, dos objetos inanimados... Seguimos sendo homens, bichos, mulheres.

 * Conjunto de objetos inanimados a adornar um bar no centro histórico de Lisboa

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Animalidades


Tenho imenso gostar pela escultura de Giacometti “O cão”; talvez seja a escultura que eu mais goste. Além do cão retratado, animal que tive muitos, durante infância, adolescência, fase adulta, e agora, na velhice, também tive gatos, jabutis, peixes de aquário e até um tamanduá que recebeu a alcunha de Marina Correia Lima, em homenagem à cantora que eu tanto apreciava à época.

Mas “o cão” de Giacometti me fala mais através de sua história. Segundo me chegou, e já não sei de onde veio a informação (ora leitor, faça seu trabalho de casa e pesquise; a mim, basta a lembrança verdadeira ou não, mas que se tornou afetiva junto a imagem da peça), o escultor teria dito de sua obra que era um autorretrato. Um dia de chuva, ele todo molhado, sob uma marquise, vê passar um cão, e pensa: “esse cão sou eu”, molhado, humilhado, cabisbaixo... E ao chegar em casa faz a escultura. Coisa mais, coisa menos, foi isso que li. E assim identifiquei-me. Quantas vezes também não me senti um cão! Tanto o cão humilhado, como o cão raivoso, o cão terno, carente, desprotegido, agressivo... Um cão.

Foto: Djair - Parque dos Budas - Bombarral - Portugal
“Animal tem que viver como animal, quando não vivem como tal, se matam.” A pichação em Santos – SP, nos anos 1980, nunca mais saiu de minha cabeça. Fica ali adormecida e vez em quando aflora. Aflora quando vejo nossa animalidade, em mim, no próximo, em amigos, familiares...

Animal tem que viver como animal...

E como estamos próximos a eles, sim, próximos porque nos esquecemos que também somos um, o tal de animal racional, que destrói tudo a sua volta, esquecemos nossa efemeridade e construímos ermidas que atravessam séculos, estradas que ligam povos, mas há que se cobrar pedágio que enriquece alguns... Quem? O rei leão? Afinal, o rei dos animais recebeu esse título do homem, que dizima o meio ambiente deste e o seu próprio, assim destruindo a eles e a si, e a toda a cadeia próxima, não só a animal, mas a de todos os reinos... Ai de novo: a palavra real. Só o homem, em sua animalidade, tem essa necessidade de coroar cabeças e espécies. Talvez pela fragilidade de sua existência, senão o mais frágil o mais necessitado de cuidados de todos os reinos. E assim cria armas e formas de defender-se, mais amiúde essas formas de defesa são a forma de extermínio ou ameaça do outro. Outro homem, outro bicho.

O cão de Giacometti, os cães de Pavlov, o cão dos Baskerville, o melhor amigo do homem. O cão talvez seja o animal mais próximo e mais presente ao homem, em todos os estados já descritos acima, e outros que fogem à falta da memória de elefante que já não tenho. Famílias tem cães por conta das crianças, alguns pais e mães metem medo às crianças dizendo que o cão morde; sem conhecer o cão, já o julgam e condenam. Que outro animal condena a sua espécie e as alheias?

Essa “superioridade” autoproclamada é mesmo um complexo animal de inferioridade às avessas. Uma constante afirmação de que o animal é o outro, pois julgamento e preconceito, se o homem não for a única espécie que os tem por distinção, é das raras. Só conheço o preconceito animal em O Pássaro Pintado, de Jerzy Kosinki, onde o autor narra que, como diversão, uma personagem pega um pássaro e o pinta de outras cores diferentes à sua espécie e depois o solta. Ao cantar como os seus, esses não o reconhecem e assim batem-lhe até à morte. Essa metáfora quanto à não aceitação do outro, ao deslocamento que se sente em certos habitats sociais, é perfeita. Que outro animal pratica bullying? Importa-se se o seu igual é mais gordo, ou baixo, ou de outra cor? Se tem uma preferência sexual diferente da sua?

O homem reage a isso com ferocidade... “Ferocidade”, algo condicionado às feras... Ao animal... E o quão ferozes podemos ser... Pedro Nava disse uma vez, naquela minha década preferida, os anos 1980, que achava o homem o pior animal da criação e que tinha essa impressão do próximo, e de si mesmo. É outra das frases que foram tatuadas em minha memória que já está a falhar. Aliás, isso é algo que preocupa-me e mete-me medo. E o medo não é mesmo um instinto animal? O instinto mãe de toda a agressividade? E lá vem de novo o círculo, agressividade seria um instinto... animal... Círculos não tem ponta e, por isso, voltamos aos temas.

         E o tema dá panos pra manga, daria para cobrir um circo de tão extenso é o tecido e entremeações de sentimentos e reflexões sobre o homem e os bichos. Inclusive, o objeto escolhido para a hipérbole, o circo, é ele mesmo a casa de homens e animais postos em exibição, uns como talentos, outros como feras domadas... Nenhum outro animal submete outra espécie a seus caprichos senão o homem, o mais feroz... Ops, submetem sim. Os cães submetem seus donos, com sua fidelidade, carência e demonstrações de afeto. Ou os gatos, companhia das mulheres solitárias, segundo alguns. E quem poderia tecer um comentário tão maldoso e difundi-lo a ponto de torná-lo quase um senso comum em determinados círculos, senão a besta humana? Como disse Fernando Pessoa a respeito desta: “Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem”, que entre todas as espécies é a que ferra e marca a sua e as outras espécies!

E se fossemos continuar como as citações em uma tese, poderíamos partir para a “vida de gado” do “povo marcado” de Zé Ramalho, e tantas outras. Mas esse animal que digita cá está cansado, assim como o leitor pode também já estar irritado com esse texto que nada diz além do óbvio e que ulula constante sobre o tema. Encerremos aqui, é o que diz o bom senso, aliás, criação humana, o bom senso que distingue o homem dos animais. Ou não...