quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Réquiens...



            Zuleica ia para o hospital, para uma internação que não seria a última, mas a primeira de um processo que antecederia seu desencarne num processo lento e denso, doloroso. Para ela, para todos que a cercavam, para todos que a conheciam. Ela a agarrar-se à esperança que só os doentes graves têm de que serão curados. De que terão dores sanadas e saúde recuperada.
            Aquele dia mal se iniciava e a carreguei no colo, os dois pavimentos, descendo a escada até a sala e depois outra, até o carro. Sem fazer força, sem suores, num medo apenas de não lhe oferecer conforto em meus braços durante o trajeto. Não pesava mais que uns 40 quilos, peso que não senti. È esse momento o de lembrança maior, quando me lembro dela já no estado de adoecimento, e embora prefira me lembrar dela em Ubatuba, na praia, a  tomar uma cervejinha, ou a passar cera na ardósia da casa, aquela lembrança é mais presente. Ainda assim é melhor que outras de sua via crucis, por sondas alimentares e demais internações. Uma noite, quando ainda podia alimentar-se com as próprias mãos, Vera, sua prima, perguntou, prestes a descer ao café do hospital, se ela queria algo, ao que animadinha responde com a mesma vontade com a qual se agarrava à vida: “Um pãozinho de queijo”, com a voz fraca dos que têm o pulmão em falência, mas os desejos de uma mineirice enraizada, mesmo após décadas fora do torrão. Era a mesma vontade com que havia comido no Natal anterior, seu último Natal, os pastéis que Henriqueta, sua irmã, fez, com o costume da mãe delas, que os preparava sempre no dia do nascimento do Cristo. Zuleica surpreendeu por comer e repetir, quando já não mais tinha quase apetite. E assim agarrava-se a esses pequenos prazeres gastronômicos, talvez os últimos que tinha, até que partiu, mansa e suave, ao encontro do jazigo da família, com uma maquiagem feita pela funerária, na qual se destacava um batom completamente fora da cor e tom dos que usara a vida inteira.
Quando Zé Luiz morreu, depois de meses de uma depressão profunda, em que nada o animava, em que a psicóloga, que frequentou 03 vezes por semana por mais de década, mais metia-lhe medo que certezas a respeito de tudo, cheguei junto com Jair, a um só tempo, no portão do prédio. Apenas nos abraçamos sem dizer nada, cada um vindo acelerado de um lado da cidade. Nos abraçamos fortemente e entramos. Recebidos pelos irmãos do Zé, fomos direto ao quarto onde há pouco ele partira de vez; depois de dias com medo de dormir teria dito: “_Ah, vou dormir... Foda-se!”
E partiu, partiu como um passarinho... Na cama embaixo dele ainda o molhado de urina, ele inerte naquela poça, o corpo já a esfriar...  Lavei-o, era a última coisa que podia fazer por ele. Pelo corpo daquele amigo tão querido. O corpo depois foi à funerária, e depois do velório seguiu embalsamado para Belém, onde ele havia nascido, onde estavam pais e irmãos que pouco o tinham visto na última década. Ficaram as lembranças, do jeito, do riso... De como nos dias de transmissão do Oscar, em que ligava para nós a cada intervalo do espetáculo, só para tecer comentários, ansiosos, ansiosíssímos e às vezes exaltados. Da risada dele, de como quando eu comprava algo e ele imediatamente comprava um igual, dizendo entre risos: “Nossa, eu comprei tal coisa, ninguém nunca pensou em comprar um desse modelo!” e riamos a valer... o jeito como repetia frases minhas, como se fossem suas, fazendo cara de bonachão e arrancando-me gargalhadas. Foi em paz!
           
            Rafael foi dormir e não acordou mais... O ataque cardíaco fulminante que muitos invejam... Sem doenças corroendo, sem acidentes traumatizantes, sem falências que deixam à cama sem sentidos, sem memória, simplesmente... Foi! Não deu tempo de se despedir, não deu tempo de dizer nada. O que vale é que o fazia constantemente, falando o quanto gostava, fazendo dedicatórias em livros, reclamando do que achava injusto, fazendo piada das pessoas de posicionamento contrário. Não deu tempo de cumprir a promessa que me fez uma semana antes de uma visita surpresa. Aquele dia, o  da promessa, ele estava feliz! Era a primeira vez que dirigia o carro atravessando a cidade. Orgulhoso com a proeza, com a coragem e com o desenvolvimento da aventura. Ainda meio que espero a visita, num sonho talvez... Ficou a lembrança do jeito cômico do excelente ator que era, dos comentários jocosos e ferinos que ele mesmo fazia de si, de suas peças, dos outros... A lembrança do jogo de limpar lareira que compramos pro Sítio de Cunha, de onde ele me trazia pinhões e histórias de caseiros, de caipiras. De vidas...
            Os três se foram.
            Três dores, três saudades, três pessoas que gostavam de mim, a menos no mundo. E hoje a saudade bateu deste jeito...
            Estejam bem... E me aguardem... Eu também vou, acho que vou demorar... Mas vou... Só não me cobrem pontualidade.
           
 Foto: Djair - O infinito, visto através de um dos arcos do Mosteiro dos Jerônimos - Lisboa Portugal.


Requiem - Fauré Gabriel Fauré (1845 - 1924) Requiem in D minor

15 comentários:

  1. Há um tempo, escrevi o texto Certeza... e a morte é o unico fato em absoluto de nossas vidas, todo o destino pode mudar, o futuro é incerto e independente do caminho que trilhamos com a morte um dia cedo ou tarde ou no tempo com ela iremos nos encontrar...

    Para uns um alivio, para outros uma tormenta, provoca lembranças e sentimentos sem fim daquelas pessoas que amamos e não queriamos que tivessem partido...

    Mas feliz ou infelizmente este é o curso da vida acontece porque tem que acontecer... nosso corpo fisico finda a existencia e a lembrançã e o espiritual ficam para a eternidade... logo somos imortais seja para quem nos ama, ou nos odeia!

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  2. Querido amigo aí está a pessoa sensível...amigo de verdade...daqueles amigos que a gente jamais esquece...emocionante o relato...agora talves eu saiba um pouco mais de vc...basta ler entre linhas.
    Beijo enorme com imenso carinho e respeito...Soni@

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  3. Ufa!
    Só isso.
    Luiz Otávio

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  4. Lindo texto Djair. Estou nesse tempo de lembranças sobre a partida de pessoas queridas, de histórias que gostaria de ter compartilhado, de abraços e beijos que se acumulam por aqui sem terem sido entregues a quem deveriam...tenho pensado nesse/as amigo/as querido/as (e familiares, meu pai principalmente...) e quanto deixamos de dizer e demonstrar para aqueles que amamos de verdade, às vezes por achar que haverá tempo, outra oportunidade, momento mais exato e mais propício....às vezes porque consideramos que o que será dito, embora nos pareça importante, perderá sua força e brilho no momento em que as palavras forem enunciadas...deve ser a passagem do tempo, querido, que remexe a solidão e provoca a emergência das lágrimas que luto em manter represadas entre a garganta ('presas no nó') e os olhos que fingem mirar à distância para não ver tristeza que resta logo aqui ao lado....beijos e obrigada pelo lindo texto que me fez parar na loucura dessa 4a feira...Wânia

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  5. Djair saudades e lembranças, tive a oportunidade de conhecer a Zuleika, e foi muito bom uma pessoa calma e eu sempre agitada. Sempre aparece os pastéis da Henriqueta e a Cida também Faz, atormentei tanto até que ela fez um dia e comi até. Quanto aos que foram só restam saudades. Quinta feira minha tia de 93 anos partiu para o mundo espiritual lucida morreu dormindo, mulher de muita fé. Bendito seja o teu texto nosso né. Que possamos dizer para o outro o quanto sentimos sua falta. Obrigada da Carminha.

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  6. Ah, meu amigo, como estas despedidas ficam gravadas a fogo em nossas almas, ah, meu amigo...

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  7. Nossa, fiquei bastante emocionado; deu vontade de chorar. O conteúdo é duro, mas forma é suave e tranquila. Parabéns!!

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  8. Oi amigo, quanta saudade hein!É as vezes amanhecemos assim saudosos. Bjs adorei o texto é sempre muito bom ler seus textos. Frávia

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  9. Acabei de ler! Confesso que esse tema não me encanta, mas por outro lado tem o seu mistério. Existem tantas crenças envolvendo a morte , mas até hoje eu tenho mtas dúvidas. Bjos
    Gina Guimaraes

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  10. Queridos, quem entrou antes nopost e o re-visitar agora, pode estranhar a troca do réquiem, que era de Mozart e foi trocado pelo de Fauré, trata-se de uma adequação ao texto, o de Mozart é muito mais pomposo, composto para um rei, o de Fauré mais contido, e não por isso menos belo. Mais adequado ao texto em sua densidade.
    Caso queiram ouvir o de mozart, o link é: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=ia8ceqIDSJw

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  11. forte.....demais....=] amei o texto...como sempre...nos remete a tudo que vivemos =]
    brigadim

    alan costa

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  12. Gostei do estilo de narração e... da mensagem!
    Em Provérbios tem um versículo em que diz que 'é melhor estar presente na hora da morte que na do nascimento'. Faz a gente pensar sobre a insignificância da nossa vida e a procura por uma solução.
    Se prepara que a sua vez está chegando... de morrer... ou de pensar mais na vida e na morte.

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  13. "...quando teus amigos te surpreendem, deixando a vida de repente e não se quer acreditar...mas se é essa vida é passageira, chorar eu sei que é besteira, mas meu amigo...não dá pra segurar..não dá pra segurar..."


    Sem palavras...


    Alex.'. Araújo

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  14. Me fez lembrar de pessoas queridas que estão seguindo suas vidas em algum lugar...

    Djair, saber de comunicar é um Dom... Conseguir transferir emoções através de um meio de comunicação tão frio, é um Dom Divino!

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