A chuva cai lá fora; não é motivo de esmorecimento, ainda que fosse tormenta; a lenha a crepitar no fogão traz calor e viço. Dásia frita peixes que Herculano e eu pescamos no dia anterior. Busco um limão no pé dos fundos, correndo debaixo da chuva que tira sarro de mim.
Comemos  alegres, rindo e lendo as recomendações coladas na janela, entre causos  de pessoas simples que chamam filtro de firto e de Rita, que quebra  todos os cabos de ferramentas - pás, enxadas e tudo que tenha cabo. As  risadas espantam a chuva e quando as gotas ficam menores, saímos para  pegar as mangas recém-caídas de altos galhos; as palmas estão tão belas  que não resistimos e as mutilamos no intuito de trazer a beleza para  dentro de casa; as uvas da parreira estão verdes e nos frustram.  Formigas sobem pelo corpo, tira-se a roupa para acabar com a correição*.  Dio, vendo a irmã de calçola a matar as formigas pelo corpo, grita: “_É  a visão do inferno!” Rimos às pampas, e ainda mais quando retruco:  “_Tem uma na sua bunda!”
  
Deixamos  as uvas pra lá, estão verdes mesmo, já diria a raposa. Ao contrário das  lichias, saborosas em sua sensualidade rósea. A água das folhas nos  banha, mas a ganância pela fruta é grande ao descobrir o sabor da fruta  no pé e comer ali mesmo. Os pêssegos de igual modo; o problema em colher  pêssegos é que se colhe um e comem-se dois. Até o Zi, que não gosta nem de àgua nem de lama nos acompanha e  se atira a frutaiada com gosto... 
  
Com  a chuva, a cacimba está cheia, a água meio barrenta e não bebemos por  isso. Limpamos folhas da bica que forma-se ao final do canal que  transborda encharcando o caminho. Acima da nascente, o cruzeiro nos  espera paciente para mais uma prece, mais um agradecimento, mais um  pedido...
  
Retornamos  contentes, o fogo ainda está aceso e um café fresquinho é produzido  enquanto trocamos as roupas molhadas, tiramos os carrapichos e o picão  das que trajávamos. Tio Onofre, o vaqueiro de dentes perfeitos em seus  quase noventa anos,  chega contando causos de benzeção e livramentos; o  céu diante de tanta alegria recolhe suas nuvens e já não há vestígios de  mau humor. Ê vidão!!!
*Correição — designação comum a inúmeras espécies de formigas carnívoras. 
Foto: Dionísio Pedro da Silveira - Casa da roça - Sítio de Dionísio
Foto: Dionísio Pedro da Silveira - Casa da roça - Sítio de Dionísio

mais um: talvez eu mudasse o título para Palmas mutiladas e formigas assanhadas...
ResponderExcluirMomentos raros e rarefeitos de pura felicidade, tal e qual um retratinho antigo encontrado no meio de um livro e que nos faz perder o real por um momento e viver o mágico. Me lembrou o mundo mundo vasto mundo, nem me chamo Raimundo e não há rima e nem solução para o real e agora... mas que eu queria estar lá naquele momento, isso eu queria.
ResponderExcluir"Ô dilícia!" rs...
ResponderExcluirmomentos no interior que coisa boa, lembro de algumas passagens no sul de minas quando juntos com os primos molhavamos os pés em um riacho comida no fogão de lenha... "coisa boa di mais di boa sô"
ResponderExcluirÊ vidão mesmo, hein! Que bacana e que inveja (inveja boa, sempre). Tirando o lance das formigas carnívoras, pois já me deu arrepios só de ler, fiquei com água na boca da frutaiada, rs
ResponderExcluirbjs
Lindo! Você faz uma prosa perfeitamente poética. Coisa linda, literatura pura. Lembro-me de Adélia Prado, minha poeta preferida.
ResponderExcluirDionísio
Lindo!!! Viajei p/ lá enqto lia...
ResponderExcluirMuito bonito. Gostoso de ler. Acaba a leitura, mas o pensamento fica preso ao que foi narrado. Luiz Otávio Pereira (Belo Horizonte)
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