quinta-feira, 7 de abril de 2016

Nem medusa, nem sansão, muito menos Rapunzel.

Todo tipo de doido tem por essas terras, ou como dizia D. Antônia, lá em Cezídia, àqueles tempos mais tranquilos e frescos, inocentes e sem tanta maldade: “Deus deixou cada agregado nesse mundo véio dele...”
Enfim...

Naquele primeiro ano de faculdade, acabei por fazer amizade com o pessoal da turma que me antecedia, e ali, no decorrer dos quatro longuíssimos anos do curso, acabei por saber algumas histórias que naquela estranha classe se passava. Se na minha turma haviam grupos distintos e antagônicos como as bibas subservientes, as patricinhas, a bancada evangélica, os da terceira idade e lá no fundão, nós, os normais, naquela outra turma anterior haviam figuras de igual calibre, sem contar outros ainda mais raros.

A distância de um ano, assim como a física, não me permitiu saber-lhes os apelidos. Enquanto que em minha sala haviam algumas identificatórias ditas a alto som como o “bagaceira” e a “vírgula”, também haviam aqueles ditos entredentes, como o “homem primata” e a “Carrie”. Sim, ela era estranha...

Mas a história bizarra naquela turma se passava com Alexandra, uma senhora já entrada em anos que tardiamente fazia sua primeira faculdade, uma dessas mulheres de quem se diz: “Ela não leva desaforo pra casa.” Era uma negra alta, esguia, gostava de usar um lenço à cabeça, de palavreado fácil, em tom que se categorizaria por allegro ma non troppo, nunca a rotular como moderado, no que se refere à altura. A antagonista dessa pequenina passagem era Rose, que vos apresento como uma bela moça de seus vinte e poucos anos, de porte esguio sem deixar que a magreza lhe tolhesse curvas e sinuosidades, muito bem distribuídas em sua pele “morena arroxeada” como se dizia de minha avó materna em sua juventude – o que valeu-lhe, até a morte, o apelido de “roxa”. Mas, voltando à beldade que descrevia, tinha cabelos lisos, o que em tempos onde já existia a tal escova progressiva seria de difícil afirmação a naturalidade de tais madeixas.
Segundo reza a lenda e os relatos contados por seus colegas, Rose teria cismado com Alexandra já nos primeiros dias de aula. E então lhe inventava histórias contundentes, como que estava grávida mas que ia tirar o filho pois o pai era casado, chocando a colega mais pelo aborto que pelo casamento do suposto genitor, ou que, noutras horas, o dito cujo era bandido, traficante, pederasta, ou que lhe tinha tomado o corpo à força. Por aí corria a correnteza de diversidade substanciosa e a imaginação fertilíssima fazia escorrer o Nilo das mais bizarras características.

Alexandra, sempre chocada, manifestava-se baixinho, acreditando ser confidente dos segredos inenarráveis de Rose. Pois bem, chegou o dia que soube-se que ela não estava grávida, que como lhe afirmava Rose, tinha sido rebate falso, como se diz. Só que agora ela estaria gostando de mulher. Alexandra, como já o dissemos, era uma senhora entrada em anos, e ouvia a colega, tentando aconselhar sem preconceitos, até que Rose lhe declarou que ela era a mulher por quem estaria apaixonada. Deu para Alexandra, que barra ali mesmo quaisquer tentativas sentimentais de um contato, digamos, mais carnal.

A partir dali, Rose tendo achado o ponto, falava, durante as aulas, baixinho, sobre seu desejo pela colega, que, no tom sempre alto, algo indignada, no seu exagero verbal, ao ser questionada pelos colegas ou professores, afirmava: “Ela é louca, eu não falei nada disso, tô aqui acompanhando a matéria...” E por aí, ia...

Passado esse surto, aconselhada a mudar de lugar, afasta-se do lado da colega e pula para a cadeira imediatamente à frente dela. E aí era o jogar de cabelos que irritava a já indignada senhora que reclamava em brados cada vez mais retumbantes, e a outra a se divertir jogando-lhe as madeixas sobre a carteira.

Pois bem, Alexandra decide calar-se; cala um dia, dois, no terceiro, quando a outra provocante lhe joga a cabeleira sobre os cadernos, ela não tem dúvida, assim como também os colegas que já não a tinham sobre as provocações de Rose. A mão é rápida e certeira ao manejar a tesoura e a mecha enorme, à guisa do escalpo, vira troféu nas mãos de Alexandra.

Rose? Bem, teve que cortar o cabelo à altura da nuca, e desde então cessaram as brincadeiras, pois que a outra não estava pra isso.


***


Allegro ma non troppo (italiano para "rápido, mas não muito") é o nome de um andamento utilizado para indicar ao músico que a execução deve ser moderadamente rápida. Em geral o movimento allegro é executado com pulsação rápida e expressão leve e alegre. Fonte: Wikipédia



Foto: Djair - Minhas próprias madeixas, a serem doadas ao Outubro Rosa

6 comentários:

  1. Dja. muito bom meu. Voltei aquelas anos, e lembrei das belas tranças que fazias no meu cabelo. (ANALOGIA AO TÍTULO)

    Elisabete Candida da Silva

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    1. Nos divertimos bastante naquela época, não? Beijão Bete!

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  2. Caramba, que memória! E que história. Lembrei da vírgula mas não do bagaceira, rs. Bjs

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    1. O bagaceira era o Zé Luis, lembra? Ele adorava o termo. beijão Rô

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  3. Dja qdo eu crescer quero ter um pontinho só da sua memoria rsrsrsrs. Adoro seus causos rrsrsrsr Frávia

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    1. Uai Frávia, mas você também tem... memória e causos. Aliás, qualquer dia preciso contar sobre a capa do capeta.

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