A verdade
é que nunca matei passarinho algum, nem sei se algum menino da rua o
fez, mas andávamos sempre armados com nossos estilingues. Era um
sábado ou domingo à tarde quando meu pai nos chamou e fomos passear
no morro que ficava a cerca de uns dois quilômetros de casa. Na
verdade, a área era de uma fazenda de criação de gado, mas só os
víamos da janela de casa, uma vez que a propriedade era imensa, num
tempo que a vida era horizontal. Talvez por isso eu até hoje sinta
falta de horizonte diante de meus olhos, e hoje chore por dentro a
cada vez que chego à janela da sala de TV e não veja mais a pequena
igreja amarela, de S. Benedito, que tinha à vista quando compramos a
casa que ora habito.
Já
tínhamos ido ao morro uma ou duas vezes, sempre com meu pai e minha
mãe, fazer piqueniques e passar as tardes ensolaradas daqueles
1970... Para se chegar ao morro atravessávamos um ribeirão que
certamente hoje virou esgoto a céu aberto, ou pior, um esgoto
canalizado, mais um morto pelo progresso, mas naqueles tempos, o
atravessávamos por uma pinguela, minha mãe, meu irmão e eu,
enquanto meu pai ia por dentro do riacho com a água que chegava a
ter certa correnteza à altura da cintura. Ele nos dava as mãos e
atravessava um depois o outro, pois a pinguela era pequena e não
queria que caíssemos e molhássemos roupas, lanches e a máquina
fotográfica com seu filme em branco e preto que tirou tantas fotos
que já não mais existem...
Do outro
lado do ribeirão a grama era baixa, o gado nunca vinha até lá, a
sede da fazenda ficava do outro lado do morro cujo topo era nosso
limite. A primeira vez que fomos ali foi por causa de uma imensa
árvore morta, escura e que se impunha no cimo descampado. Na rua,
onde brincávamos livres, rezava a lenda que era mal-assombrada, e
por isso mesmo meu pai quis levar-nos lá, para que meu irmão e eu
perdêssemos o medo da tal assombração, daquela e de outras...
Mas, lá
voltávamos dessa vez atrás de uma forquilheira, que segundo
explicou meu pai era a árvore que dava muitos galhos e por isso
formava muitas forquilhas para que assim fizéssemos nossos
estilingues. Como sempre, andamos muito, lanchamos, nos divertimos, e
na volta trazíamos nossas três forquilhas. O elástico de borracha
era fornecido por uma vizinha que era enfermeira, pois naquele tempo
para as injeções na veia ou retirada de sangue se usava uma espécie
de borracha elástica, amarela e cilíndrica. A pecinha de couro que
envolveria a pedra a ser lançada foi feita com a língua dos sapatos
de couro que ficavam velhos e sem uso mas ainda estavam por ali.

Mas à
noite, sós com os meninos da rua, brincávamos de guerra em
trincheiras feitas naturalmente por restos de construção em um
terreno que havia logo à entrada da rua. Passávamos através das
grades e ali era o campo de batalha onde, armados com nossos
estilingues, coisa que todos tínhamos, mas só o meu e o de meu
irmão confeccionados por nós, com a ajuda de nosso pai, e então
municiados com enormes cachos de mamona, colhidos ali mesmo, às
vezes correndo para nos abastecermos ante a saraivada de bolinhas
verdes peludas que eram atiradas pelo exército inimigo, fechávamos
a noite em risos e estardalhaços, suados, sujos, aliás imundos,
guardando as armas antes do banho e do dormir em paz, alegres e
satisfeitos.
Maravilhoso lembro das manchas em meu corpo em formato de bolinhas, pois qual o pirralho que não brincou de estilingue.
ResponderExcluirÉ Unknown uma pena, mas hoje as crianças nem sabem do que se trata... E assim nossa cultura vai se perdendo...
ExcluirTu escreve com tanta riqueza de sentidos,que da a impressão que é algo fresco e fortemente lembrado...épocas q ficam marcadas...abç
ResponderExcluirObrigado Victor. nesse texto realmente me emocionei enquanto o escrevia... :)
ResponderExcluirGrande Franco Atirador
ResponderExcluirhehe
seu texto me leva a refletir que não só as crianças de hoje estão perdendo a nossa (cultura de moleque) como também as famílias perderam essa coisa gostosa que era passar os fins de semanas em um piquenique. "A Câmera com seu filme preto e branco", até a arte da fotografia tinha o seu charme, esperávamos quanto tempo até que se revelassem as fotos? E as que queimavam então? rs.
Hoje fim de semana em família é ir todos pro shopping, cada um enfurnado no seu mundinho virtual no celular...
E assim caminha a humanidade.
Belo texto mano!
Pois é Baratta, não se vive junto, apenas se consome e se exibe junto, as vezes se vê em restaurantes e praças de alimentação, famílias a almoçar junto, e todos calados, apenas olhando em volta, esperando para ir a festa do consumo... E as fotos? Tinha aquela coisa: Ah, cortou a cabeça de fulano, os pés de Sicrano... As risadas e as surpresas das fotos, os chifrinhos e caretas descobertas, as sobras que atrapalhavam e exigiam do fotografo um minímo de talento com as lentes, coisas que não se vê nas fotos de redes sociais, é só mocinhas em frente ao espelho com celular e rapazinhos nos espelhos das academias... Ai de nós.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirTexto riquíssimo! Mergulhei na sua história, nos detalhes... na união familiar que ficou evidente através de suas palavras.
ResponderExcluirAí esta a origem da sua sabedoria; aí esta a origem da sua experiência de vida, da sua paixão pela escrita. Você tem uma bagagem preciosa, algo que hoje nossas crianças não tem.
Lendo seu texto , lembrei de algumas passagens da minha infância relacionadas a esse tema. No meu caso, eu andava sempre atras do meu irmão que saia para caçar passarinhos e, mesmo correndo o risco de levar uns tapas, espantava todos , para que ele não os matasse. rss
Saudades daqueles tempos !
Bjs. Rosangela.
Obrigado Linda, por isso o vídeo do Rolando Boldrin pra mim hoje a tarde?
ExcluirAh, as nossas infâncias... Que deus tenha piedade dos infantes de hoje...
bjs
Que delicia ler e ir vivenciando cada momento rico da infância hoje tão perdida. Eu sempre fui um moleque e brincava de estilingue a carrinho de rolemãn (acho que escreve assim). Enfim descreveste a infância de uma maneira tão gostosa e no fim quando terminavam suas brincadeiras estavam felizes sujos? sim mas só no corpo e roupa. Hoje brincam de matar e matam.....Não me lembro o livro de Paulo Freire no qual ele escreveu mais ou menos assim:Essas crianças quando pequenas brincavam de matar galinhas e hoje queimam índio que dorme no banco da praça.
ResponderExcluirobrigada Carminha
É Carminha, tá cada vez mais difícil existir, ainda bem que temos lembranças (e saudades) de outros tempos. :) bjs
ExcluirBelo texto, Djair! Emoções em profusão, felizmente não represadas ou abafadas por você.
ResponderExcluirLuiz Otávio Pereira
Obrigado Luiz, "de facto" dessa vez me emocionei bastante ao escrever, até pela recente perda de meu pai... Talvez por isso o texto tenha ficado suave...
ExcluirAbração
Nossa, fui longe com o texto, nunca tive estilingue, menino criado em cidade grande não tem esses luxos, mas lembrei das idas a praia com meu pai, mãe e irmã. A família reunida a caminhar, contar casos, inventar brincadeiras...
ResponderExcluirValeu!!!
Legal Luciano, bom saber que o texto também te remeteu a essas lembranças, abração
ExcluirQue bom termos histórias para nos lembrarmos e contarmos.Legal dividir isso com seus leitores.Isso que era infância,hem!Feliz você ter vivido isso tudo.Crianças tem quer ter o espírito solto.Soltar pipa,correr,gritar,se sujar de lama,ralar o joelho,estilingar e estilingar..Mas,hoje em dia,a criança vive presa dentro de um mundo virtual de internet,principalmente,esses jogos de computadores.Uma pena!
ResponderExcluirBeijão,Dja!Dani.