12 de
fevereiro de 2013, àquele dia, uma terça-feira de carnaval, meu
irmão encontrara meu pai morto, em seu quarto, caído ao chão,
posição fetal, as duas mãos sobre o rosto, como gostava de dormir.
Talvez a queda tenha sido causada pela dor sentida ao aproximar-se o
momento de sua partida, sabe-se lá o porquê, um ataque cardíaco,
ou qualquer outra desculpa dessas que a vida usa quando a morte vem
ceifar-nos a presença física daqueles que amamos. Mas ali, ao lado
da cama, o corpo não teve ânimo, e menos ainda, forças de voltar à
cama.
A fome
que passou nos últimos dias, sem conseguir ingerir qualquer
alimento, e sequer água, devido à obstrução do tumor no esôfago,
lhe minavam força, vontade, ou qualquer sentimento que necessitasse
para uma reação maior. Negava-se a soro ou internações e à mera
menção destes surgiam fortes irritações, como são as minhas, que
ora, já se sabe de onde vêm.
Morreu em
casa, como queria; de mim, não se despediu, embora o abraço que lhe
dei no momento antes de minha partida, na última vez em que
fisicamente estivemos juntos, lhe falasse de amor, de admiração, de
carinho por aquele homem que era então uma caricatura suja e
amassada do que tinha sido, seus orgulhos vencidos de há muito pela
perda de tudo que tivera, posses e família, família que depois
viera a resgatar, numa profunda descida rumo ao fundo de um poço que
ele cavara com a ajuda do álcool, da teimosia, da intolerância.
Resgatamo-lo
de uma condição triste, mas ai então já não era mais o mesmo
homem, anos de bebida e outros desregramentos o tornaram
irreconhecível a quem o via de terno, a debater política, religião,
direito.
Ali no
chão, sob o quadro do Sagrado Coração de Jesus e Imaculado Coração
de Maria, que fora de minha avó, ele já não era mais coroinha,
advogado, pai, filho, nem estava ali o espírito que, se não santo,
mortificou-se ao fim de uma vida digna de enredo fílmico, pela fome,
dor e sede. Nunca dormia sem rezar, nem jamais se levantava sem
benzer-se, e acredito essa fé tenha sido o que lhe valeu no martírio
de seus últimos dias. Até à véspera da morte, quando ao
despedir-se de meu irmão, recomendou como sempre: “Vai com Deus,
tá tudo bem!” O quadro, temo tenha o mesmo fim de uma imagem de santa Luzia que
minha mãe sempre teve, de quem meu avô era devoto, que os
“evangélicos” deram fim, aproveitando-se de sua ausência quando
veio visitar-me. Está morto; uma boa morte é prometida pela Igreja
Católica a quem tem em lugar de honra em sua casa os sagrados
corações. Está na quinta e na décima segunda promessa do sagrado
coração de Jesus: “Serei o seu refúgio durante a vida e em
especial na hora da morte.” “(...) não morrerão no Meu
desagrado(...) o Meu Divino Coração será o seu refúgio de
salvação nesse derradeiro momento.” Será que lhe valeram? Não
sei. Mas vejo o sofrimento de seus últimos dias como uma
mortificação da carne como sugerem os espiritualistas.
Está
morto; em mim abateu-se uma grande tristeza, por não tê-lo visto
nos últimos dias, embora o medo de ver o estado em que sabia se
encontrar fosse grande e apenas quinze dias nos separassem do
encontro que eu já havia programado; as passagens compradas servirão
apenas para lhe visitar a cova.
A morte
de entes queridos muitas vezes causa nas pessoas uma ruptura pessoal
com Deus, noutras nos aproxima d'Ele. Em mim, não sei dizer, sei
apenas da imensa falta de energia psicológica
que me abate e que talvez com este texto tento exorcizar, rompendo o
silêncio cauteloso e gradual que se instalou em mim, cauteloso
porque sentimentos de intolerância e raiva com coisas menores me
diziam que devia evitar a verbalidade para não descontar em ninguém
a frustração comigo mesmo, por não ter de alguma forma ter estado
mais presente junto ao pai que partiu, gradual porque cada vez menos
sentia vontade de falar ou interagir, muito embora palavras de apoio
e pesares recebidos de amigos, por visita, telefone e redes sociais
me confortassem de verdade, diminuindo o sentimento de orfandade, de
abandono. Da mesma forma que a ausência de uma palavra, que fosse um
simples: “força” ou “abraço”, vindo de pessoas que se dizem
tão próximas e tão amigas, foi como um: “você está sozinho,
sim!”
No imenso
quintal de sua casa um enorme ajuntamento de madeira, galhos, ali
ficou; era madeira que ele juntava para que eu fizesse fogueira
quando lá fosse, já que eu sempre gostei de fogueiras desde
criança, e bastava que eu desse as costas ele já as começava a
juntar para a próxima vez que eu fosse. Em um móvel, está uma
caixa de castanhas, para quando eu fosse...
Olho
fotos dele e vejo o corpo franzino, debilitado, o orgulho vencido em
parte, pois seu gênio, esse, nunca foi domado. As lembranças
presentes, de sua chegada com gibis que trazia na infância, do
carpir de quintais, dos cachorros que tivemos, de construir
chiqueiros e galinheiros no grande quintal que tínhamos e onde aos
fins de semana ele reinava, e nós, meu irmão e eu, o ajudávamos
nos divertindo com o “serviço”. Minha mãe chegava com as
“baciinhas” de plástico, com farofinha, onde um comia o fígado,
o outro a moela e o terceiro o coração do frango que seria servido
com macarrão no almoço, junto a elas vinham a caipirinha para ele,
e a meu irmão e a mim, nos nossos copos com canudinho, a limonada
com casca de limão e gelo dentro – era a nossa caipirinha também,
para ali junto com o pai, estarmos na mesma toada, já que a vibração
e sintonia era completa. As mesada recebidas dentro de envelopes de
holerites, com nossos nomes datilografados, da subida na serra para
buscar coquinhos, dos jogos de damas onde ele nos deixava ganhar, o
jardim que montávamos com as mudas que ele mesmo trazia, as enormes
hortênsias que causavam admiração da vizinhança e que ele se
orgulhava. Tão diferente do final, onde já sem compreender que as
próprias folhas viram adubo, não deixava cair uma folha no quintal
sem que a catasse, como se estivesse limpando um salão; as plantas,
ele regava todos os dias, necessitassem ou não, e se lhe era tirada
a enxada e escondida para evitar que ele, agora fraco e debilitado,
se expusesse ao sol inclemente, abatia-lhe uma tal depressão que ela
lhe era logo devolvida diante de tanta tristeza.
Lembranças
de tempos distantes e outros de instantes atrás se misturam, como se
os varresse e misturasse, juntando-os em um canto como se fossem
cisco, que o vento vem e espalha novamente. O pedido para pintar
portas e janelas de seu quarto, onde ele mancharia em instantes a
camisa do São Paulo, seu time de coração, que acabara de lhe dar,
vem junto com as do balanço que ele fizera no abacateiro de uma das
casas onde moramos, para que ali brincássemos, ou do seu desejo de
comer uma gemada de 12 ovos de pata, com a qual ele atormentou
minha mãe por dias, até que ela resolveu fazer, não com a dúzia,
mas com três, e ele não deu conta de comer, por ser tão forte que
encheu-se antes de devorada a metade. E aí retorna o momento antes
da internação recente onde não conseguia tomar o suco de acerola,
que ele mesmo colhia no quintal, e seu lamento em dizer que era uma
pena estar com sede, ter um suco tão gostoso e não poder tomar por
não conseguir engolir. Vêm as lembranças de diagnósticos que não
caberão aqui por não ser um escrito de relato de caso para revistas
médicas, ou para de certa forma lhe poupar seja lá do que for.
Que ele
esteja em paz.
Foto: Djair - Olavo de Souza - meu pai, em uma das últimas visitas que lhe fiz.
Vídeo - Youtube -Gabriel Fauré - Requiem
Foto: Djair - Olavo de Souza - meu pai, em uma das últimas visitas que lhe fiz.
Vídeo - Youtube -Gabriel Fauré - Requiem
Você foi presente sim, e muito, sei disso. Estar presente nem sempre é estar junto. Adriana Lima
ResponderExcluirAbraço carinhoso. - Adriana Lima
ExcluirQue linda homenagem este texto! Lembrancas sao tudo o que temos nesta vida, que bom que vc tem muitas dele. Deus abencoe vc e sua familia. Estou aqui as ordens, bjao.
ResponderExcluirDeus abençõe irmão. As lembranças veem a tona mesmo nessa hora. Nos lembramos de cada detalhe, cada vez. Qualquer coisa irmão tamos aí. Abraço.
ResponderExcluirOi Dja como sempre seus textos são memoráveis mesmo neste momento tão dolorido, mas tenha certeza que ele está em paz e você também pois o levará sempre em seu coração com as lembranças que descreveu. Um forte abraço. Frávia
ResponderExcluirAcho que até mesmo ele derramou lágrimas nesse maravilhoso texto que lhe dedicou. Fica em paz amigo.
ResponderExcluirDjair a perda é sempre dificil, mas com certeza ele esta em paz e espero que vc fique bem. Abraços. Claudia
ResponderExcluirBela homenagem ao seu pai. Por certo que você ainda fará muitas homenagens a ele, mesmo que seja solitariamente, sem que ninguém perceba.
ResponderExcluirAbraço,
Luiz Otávio de Lima Pereira
A perda de um ente querido é algo muito sofrível.A última cena,a despedida..Lembro-me do meu último dia com a minha vó,eu dei um beijo nela e ela me retribui..foi a última cena de nós duas,no outro dia,ela já estava dentro de um caixão,vítima de um derrame cerebral fatal.Quantos não podem ter uma despedida doce assim?É o lado mais cruel da morte,não poder ter aquele momento de despedida.
ResponderExcluirA dor,ameniza,mas a saudade,essa fica e cresce a cada dia..Tá aí,a saudade é a vitória da vida sobre a morte.
Beijão,querido!Fique em paz,pois seu pai está nos braços do Pai dos pais.Não há mais sofrimento.
Dani.
Djair, perder um pai é muito difícil. Eu sofri muito quando perdi o meu, também no carnaval. Por isso, hoje em dia essa época é meio triste pra mim. Apesar que nunca gostei mesmo do carnaval.
ResponderExcluirA sua homenagem é linda! E com certeza seu pai, onde estiver, recebeu esse presente.
Um grande abraço e obrigada pela visita lá no blog e também pela força :)
Não há como não ter lembranças boas de Seu Olavo. Me lembro, que eu podia passar horas ouvindo ele contar histórias vividas na cidade de Cubatão. Sempre cheias de muito humor...Sem falar que eu tinha uma inveja branca de sua inteligência.
ResponderExcluirDeixou saudades...
Não há como não ter lembranças boas de Seu Olavo. Me lembro, que eu podia passar horas ouvindo ele contar histórias vividas na cidade de Cubatão. Sempre cheias de muito humor...Sem falar que eu tinha uma inveja branca de sua inteligência.
ResponderExcluirDeixou saudades...
Lembro-me dele com muito carinho, em Cubatão. Fui visitá-lo com você e ele me deu uma flor vermelha e uma mandioca frita. Sinceridade e simplicidade que jamais esquecerei.
ResponderExcluirAdriana Lima
Que lindo texto que tão profundamente explica a sua dor. Eu após ler, revivi a minha tristeza de perder um pai, assim como o seu, o álcool, o cigarro, a teimosia lhe tiraram a vida antes de participarem das nossas conquistas. #suspiro.
ResponderExcluirAlba
O amor mora nos pedacinhos da vida...e a gente percebe isso no seu texto. Vc ama seu pai e é amado por ele. Isso o tempo não vai apagar...bj Dja
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