domingo, 17 de fevereiro de 2013

Réquiem a meu pai

12 de fevereiro de 2013, àquele dia, uma terça-feira de carnaval, meu irmão encontrara meu pai morto, em seu quarto, caído ao chão, posição fetal, as duas mãos sobre o rosto, como gostava de dormir. Talvez a queda tenha sido causada pela dor sentida ao aproximar-se o momento de sua partida, sabe-se lá o porquê, um ataque cardíaco, ou qualquer outra desculpa dessas que a vida usa quando a morte vem ceifar-nos a presença física daqueles que amamos. Mas ali, ao lado da cama, o corpo não teve ânimo, e menos ainda, forças de voltar à cama.

A fome que passou nos últimos dias, sem conseguir ingerir qualquer alimento, e sequer água, devido à obstrução do tumor no esôfago, lhe minavam força, vontade, ou qualquer sentimento que necessitasse para uma reação maior. Negava-se a soro ou internações e à mera menção destes surgiam fortes irritações, como são as minhas, que ora, já se sabe de onde vêm.

Morreu em casa, como queria; de mim, não se despediu, embora o abraço que lhe dei no momento antes de minha partida, na última vez em que fisicamente estivemos juntos, lhe falasse de amor, de admiração, de carinho por aquele homem que era então uma caricatura suja e amassada do que tinha sido, seus orgulhos vencidos de há muito pela perda de tudo que tivera, posses e família, família que depois viera a resgatar, numa profunda descida rumo ao fundo de um poço que ele cavara com a ajuda do álcool, da teimosia, da intolerância.

Resgatamo-lo de uma condição triste, mas ai então já não era mais o mesmo homem, anos de bebida e outros desregramentos o tornaram irreconhecível a quem o via de terno, a debater política, religião, direito.

Ali no chão, sob o quadro do Sagrado Coração de Jesus e Imaculado Coração de Maria, que fora de minha avó, ele já não era mais coroinha, advogado, pai, filho, nem estava ali o espírito que, se não santo, mortificou-se ao fim de uma vida digna de enredo fílmico, pela fome, dor e sede. Nunca dormia sem rezar, nem jamais se levantava sem benzer-se, e acredito essa fé tenha sido o que lhe valeu no martírio de seus últimos dias. Até à véspera da morte, quando ao despedir-se de meu irmão, recomendou como sempre: “Vai com Deus, tá tudo bem!” O quadro, temo tenha o mesmo fim de uma imagem de santa Luzia que minha mãe sempre teve, de quem meu avô era devoto, que os “evangélicos” deram fim, aproveitando-se de sua ausência quando veio visitar-me. Está morto; uma boa morte é prometida pela Igreja Católica a quem tem em lugar de honra em sua casa os sagrados corações. Está na quinta e na décima segunda promessa do sagrado coração de Jesus: “Serei o seu refúgio durante a vida e em especial na hora da morte.” “(...) não morrerão no Meu desagrado(...) o Meu Divino Coração será o seu refúgio de salvação nesse derradeiro momento.” Será que lhe valeram? Não sei. Mas vejo o sofrimento de seus últimos dias como uma mortificação da carne como sugerem os espiritualistas.

Está morto; em mim abateu-se uma grande tristeza, por não tê-lo visto nos últimos dias, embora o medo de ver o estado em que sabia se encontrar fosse grande e apenas quinze dias nos separassem do encontro que eu já havia programado; as passagens compradas servirão apenas para lhe visitar a cova.

A morte de entes queridos muitas vezes causa nas pessoas uma ruptura pessoal com Deus, noutras nos aproxima d'Ele. Em mim, não sei dizer, sei apenas da imensa falta de energia psicológica que me abate e que talvez com este texto tento exorcizar, rompendo o silêncio cauteloso e gradual que se instalou em mim, cauteloso porque sentimentos de intolerância e raiva com coisas menores me diziam que devia evitar a verbalidade para não descontar em ninguém a frustração comigo mesmo, por não ter de alguma forma ter estado mais presente junto ao pai que partiu, gradual porque cada vez menos sentia vontade de falar ou interagir, muito embora palavras de apoio e pesares recebidos de amigos, por visita, telefone e redes sociais me confortassem de verdade, diminuindo o sentimento de orfandade, de abandono. Da mesma forma que a ausência de uma palavra, que fosse um simples: “força” ou “abraço”, vindo de pessoas que se dizem tão próximas e tão amigas, foi como um: “você está sozinho, sim!”

No imenso quintal de sua casa um enorme ajuntamento de madeira, galhos, ali ficou; era madeira que ele juntava para que eu fizesse fogueira quando lá fosse, já que eu sempre gostei de fogueiras desde criança, e bastava que eu desse as costas ele já as começava a juntar para a próxima vez que eu fosse. Em um móvel, está uma caixa de castanhas, para quando eu fosse...

Olho fotos dele e vejo o corpo franzino, debilitado, o orgulho vencido em parte, pois seu gênio, esse, nunca foi domado. As lembranças presentes, de sua chegada com gibis que trazia na infância, do carpir de quintais, dos cachorros que tivemos, de construir chiqueiros e galinheiros no grande quintal que tínhamos e onde aos fins de semana ele reinava, e nós, meu irmão e eu, o ajudávamos nos divertindo com o “serviço”. Minha mãe chegava com as “baciinhas” de plástico, com farofinha, onde um comia o fígado, o outro a moela e o terceiro o coração do frango que seria servido com macarrão no almoço, junto a elas vinham a caipirinha para ele, e a meu irmão e a mim, nos nossos copos com canudinho, a limonada com casca de limão e gelo dentro – era a nossa caipirinha também, para ali junto com o pai, estarmos na mesma toada, já que a vibração e sintonia era completa. As mesada recebidas dentro de envelopes de holerites, com nossos nomes datilografados, da subida na serra para buscar coquinhos, dos jogos de damas onde ele nos deixava ganhar, o jardim que montávamos com as mudas que ele mesmo trazia, as enormes hortênsias que causavam admiração da vizinhança e que ele se orgulhava. Tão diferente do final, onde já sem compreender que as próprias folhas viram adubo, não deixava cair uma folha no quintal sem que a catasse, como se estivesse limpando um salão; as plantas, ele regava todos os dias, necessitassem ou não, e se lhe era tirada a enxada e escondida para evitar que ele, agora fraco e debilitado, se expusesse ao sol inclemente, abatia-lhe uma tal depressão que ela lhe era logo devolvida diante de tanta tristeza.

Lembranças de tempos distantes e outros de instantes atrás se misturam, como se os varresse e misturasse, juntando-os em um canto como se fossem cisco, que o vento vem e espalha novamente. O pedido para pintar portas e janelas de seu quarto, onde ele mancharia em instantes a camisa do São Paulo, seu time de coração, que acabara de lhe dar, vem junto com as do balanço que ele fizera no abacateiro de uma das casas onde moramos, para que ali brincássemos, ou do seu desejo de comer uma gemada de 12 ovos de pata, com a qual ele atormentou minha mãe por dias, até que ela resolveu fazer, não com a dúzia, mas com três, e ele não deu conta de comer, por ser tão forte que encheu-se antes de devorada a metade. E aí retorna o momento antes da internação recente onde não conseguia tomar o suco de acerola, que ele mesmo colhia no quintal, e seu lamento em dizer que era uma pena estar com sede, ter um suco tão gostoso e não poder tomar por não conseguir engolir. Vêm as lembranças de diagnósticos que não caberão aqui por não ser um escrito de relato de caso para revistas médicas, ou para de certa forma lhe poupar seja lá do que for.

Que ele esteja em paz.

Foto: Djair - Olavo de Souza - meu pai, em uma das últimas visitas que lhe fiz.
Vídeo - Youtube -Gabriel Fauré - Requiem

15 comentários:

  1. Você foi presente sim, e muito, sei disso. Estar presente nem sempre é estar junto. Adriana Lima

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  2. Que linda homenagem este texto! Lembrancas sao tudo o que temos nesta vida, que bom que vc tem muitas dele. Deus abencoe vc e sua familia. Estou aqui as ordens, bjao.

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  3. Deus abençõe irmão. As lembranças veem a tona mesmo nessa hora. Nos lembramos de cada detalhe, cada vez. Qualquer coisa irmão tamos aí. Abraço.

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  4. Oi Dja como sempre seus textos são memoráveis mesmo neste momento tão dolorido, mas tenha certeza que ele está em paz e você também pois o levará sempre em seu coração com as lembranças que descreveu. Um forte abraço. Frávia

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  5. Acho que até mesmo ele derramou lágrimas nesse maravilhoso texto que lhe dedicou. Fica em paz amigo.

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  6. Djair a perda é sempre dificil, mas com certeza ele esta em paz e espero que vc fique bem. Abraços. Claudia

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  7. Bela homenagem ao seu pai. Por certo que você ainda fará muitas homenagens a ele, mesmo que seja solitariamente, sem que ninguém perceba.
    Abraço,
    Luiz Otávio de Lima Pereira

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  8. A perda de um ente querido é algo muito sofrível.A última cena,a despedida..Lembro-me do meu último dia com a minha vó,eu dei um beijo nela e ela me retribui..foi a última cena de nós duas,no outro dia,ela já estava dentro de um caixão,vítima de um derrame cerebral fatal.Quantos não podem ter uma despedida doce assim?É o lado mais cruel da morte,não poder ter aquele momento de despedida.
    A dor,ameniza,mas a saudade,essa fica e cresce a cada dia..Tá aí,a saudade é a vitória da vida sobre a morte.

    Beijão,querido!Fique em paz,pois seu pai está nos braços do Pai dos pais.Não há mais sofrimento.

    Dani.

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  9. Djair, perder um pai é muito difícil. Eu sofri muito quando perdi o meu, também no carnaval. Por isso, hoje em dia essa época é meio triste pra mim. Apesar que nunca gostei mesmo do carnaval.
    A sua homenagem é linda! E com certeza seu pai, onde estiver, recebeu esse presente.

    Um grande abraço e obrigada pela visita lá no blog e também pela força :)

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  10. Não há como não ter lembranças boas de Seu Olavo. Me lembro, que eu podia passar horas ouvindo ele contar histórias vividas na cidade de Cubatão. Sempre cheias de muito humor...Sem falar que eu tinha uma inveja branca de sua inteligência.
    Deixou saudades...

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  11. Não há como não ter lembranças boas de Seu Olavo. Me lembro, que eu podia passar horas ouvindo ele contar histórias vividas na cidade de Cubatão. Sempre cheias de muito humor...Sem falar que eu tinha uma inveja branca de sua inteligência.
    Deixou saudades...

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  12. Lembro-me dele com muito carinho, em Cubatão. Fui visitá-lo com você e ele me deu uma flor vermelha e uma mandioca frita. Sinceridade e simplicidade que jamais esquecerei.

    Adriana Lima

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  13. Que lindo texto que tão profundamente explica a sua dor. Eu após ler, revivi a minha tristeza de perder um pai, assim como o seu, o álcool, o cigarro, a teimosia lhe tiraram a vida antes de participarem das nossas conquistas. #suspiro.
    Alba

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  14. O amor mora nos pedacinhos da vida...e a gente percebe isso no seu texto. Vc ama seu pai e é amado por ele. Isso o tempo não vai apagar...bj Dja

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Será muito bom saber que você leu, e o que achou.
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