quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Dores, Insetos e flores


     Enquanto a dor dá uma trégua depois de medicamento este, medicamento aquele, aproveito para escrever. Segundo os dois médicos a dor é muscular e pede repouso, como assim? Eu já estava de repouso quando ela surgiu, mas como disse uma amiga, depois dos 40, quando você acorda sem nenhuma dor pensa logo: morri?

      Enfim, passará, em algum momento; assim, sempre se espera que pinceladas de mercúrio cromo ou emplastros de penicilina curem arranhões, como quem espera que leis da Maria da Penha curem caráter, quem espera que tiros no ouvido, cortes nos punhos ou enforcamentos curem almas doentes, corações feridos e doenças do espírito.

       Pela janela observo que as formigas acabaram mais uma vez com as roseiras e fizeram passeio pelas azaleias e nem o manacá escapou de sua voracidade: ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil. Desde a infância do país elas fazem raiva, e ainda hoje sobrevivem; não sei de onde vêm em seu famélico assalto noturno. Como os que atacam geladeiras à noite, elas aproveitam a escuridão para se fartar, como o hóspede que tive que abriu os dois potes de doce de leite que trouxe do Serro, quando da ida a Diamantina. Comeu ambos, inclusive o que era um presente a uma amiga, tapou, colocou-os de volta ao fundo da prateleira, vazios, deixando à frente um outro, que estava aberto para consumo, intacto, num gesto sombrio que nem as formigas ousam, afinal, elas não disfarçam – apenas devoram.

      Preciso comprar um pacote de “isca” para que se dê cabo delas. Elas perseguem meus jardins, desde Floriano no Piauí ao da casa de Ubatuba; elas tem algo pessoal contra mim, contra os jardins que planto. Ou eu acabo com as saúvas ou elas acabam com o jardim. Não se pensa que elas habitam a maior cidade da América do Sul, em meio a tanto asfalto e sulphur jogado diariamente no ar da urbe pelos escapamentos de milhões de carros, mas as pequenas bestas são como gente... resistem.

      Não tenho pena delas como tenho das lagartas, essas com sua voracidade dirigida às folhas; depois virarão borboletas e sempre penso: se matar todas as lagartas as borboletas acabam, e aí lhes dou saladas de samambaias e outras tantas plantas, e pelo menos algumas delas terão asas coloridas a flutuar como pétalas bailando pelo ar, beijando flores fixas de outro reino (a saber o vegetal). Os caracóis também são poupados, mas só em dias de extrema doçura, como às vezes me ocorrem – sim, até “Ming - o impiedoso” tem seus dias de “Pollyanna”. Mas nada garante que no dia seguinte sejam esmagados sem remorso, mas, naqueles raros momentos, poderão carregar o peso de suas casas às costas, peso que apenas eles sentem, assim como os bibliotecários que carregam o prédio às costas (unica profissão cujo nome do local de trabalho está no nome da profissão: biblioteca+rios).

      Os tatuzinhos, que Júlia tanto ama também são poupados, o máximo que lhes acontecem é passear por instantes nas mãos da pequena que com seus dois anos lhe dirá: abre!, abre! esperando-os desenrolarem para devolvê-los a terra. Aliás, algumas das composteiras devem já ter terminado sua alquimia, pela qual cascas de frutas, ovos e legumes, pó de café, folhas e outros orgânicos se tornam terra nutritiva, que encherá vasos, floreiras e canteiros e que se transformarão em folhas e flores e frutos novamente.

      Todas essas lembranças e reflexões vindas de um instante à janela roubado ao repouso que se supõe restaurador, enquanto a dor esquece-se de mim por um momento, e se os analgésicos foram eficazes em fazê-la adormecer, esses pensamentos emanados da vista do jardim, que está descuidado desde a primeira leva de repouso há alguns dias, são mais eficazes em acalmar o pensamento.

      Hora de voltar à cama e a mais uma leitura, enquanto o tempo passa e o corpo cura.

Fotos: Djair - Flores do jardim  de casa.

6 comentários:

  1. Meu caro...

    Suas palavras são feito as flores que vem para alegrar nosso dia, enriquecer nossas vidas, clarear nossa mente...

    Como uma formiga você trabalha em verso e prosa trazendo para nós um belo momento de relaxamento e anestesia das dores que nos afligem...

    Só não coloque inseticida nas palavras que saem da sua alma pois nós adoramos o que escreves!

    Grande abraço...

    Rafinha

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  2. "São lembranças, bons momentos..."


    Alex.'.Araújo

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  3. Cara... Comer o doce de leite e guardar o pote vazio no mesmo lugar??? Esse merece ser operado de catarata com as saúvas, sem anestesia!!!

    Logo no doce de leite!No doce de leite!!! PÔ!!!

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  4. HILÁRIO!!!! Talvez Ming, o impiedoso, deteste o que vou dizer, mas a dor só afia o seu sarcasmo e torna deliciosamente irônico o seu texto. Mas desejo melhoras assim mesmo. Beijos, Myrna Gioconda

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  5. Brevemente vc voltará a cuidar bem do seu jardim! E as saúvas, elas tbm estão personificadas em nossas vidas ! É preciso ter mto cuidado , porque se não, o estrago é grande! Portanto, inseticida nelas!!! Na minha vida, estou protegendo-me dos seus ataques, praticando o perdão, potencializando minha fé, orando mto e fazendo ommmmm!!! Um abraço no seu coração e um ótimo fds!

    Gina Guimaraes

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  6. Lindo demais seu texto, Djair!

    Assim como são lindas as flores das quais você tirou foto!!!! Também andei tirando de umas papoulas e rosas daqui de casa...
    Quem ler o que escrevo agora, vai achar que sou assim-assim com plantas... Não sou!
    Aprecio a natureza, amo as flores, mas não sou daquelas que as fica observando por muito tempo... Quando se trata da natureza, minha ficção é com os animais!...
    Portanto, fiquei defendendo interiormente as formigas e lagartas e tive que rir com o contraste que ocorreu em nossas vidas, amigo!
    Enquanto você é perseguido malevolamente pelas saúvas, tenho ricas lembranças de infância delas! Quase não as vejo mais - e olha que temos roseiras e uma pequena horta!- só que elas parecem que não se ligam muito na gente... Lembro delas cortando as asinhas e correndo de um canto ao outro da criançada que queria pegá-las! Adorava botar a mão nas asas, achava-as muito bonitas! hehe
    Adorei ot exto, como sempre!

    Um abração da Mary pra você!
    (Não, o Brasil não pode acabar com as saúvas... rsrsrs) :)))))

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