“Sou
um homem, sou um bicho, sou uma mulher...” A voz de Ney Matogrosso afaga-me os
ouvidos com esses versos, nos quais ele continua: “sou a mesa e as cadeiras
desse cabaré...”
Pois
bem, no último texto, falamos justamente dessa dualidade do ser humano, ser
homem, ser bicho... Negar um para ser o outro... Ser muito mais bicho que
humano. Terminei o texto e fiquei com essa trilha sonora na cabeça. E, junto,
uma sensação de que não terminou.
Lembrança
de uma amiga que preocupava-se muito com a doutrina espírita da reencarnação pois
não queria de forma alguma já ter sido cachorro. Uma vez, numa destas reuniões,
fez a pergunta e lhe responderam que não, que bicho nunca vira gente, gente
nunca foi bicho... Será? Correntes do hinduísmo, que é muito mais antigo que o
cristianismo, dizem que sim. E mais: que podes voltar a sê-lo. Eu, em verdade, acredito
mais nessa corrente que permite a involução. Aliás, vejo pessoas próximas e
políticos distantes (não tenho muita proximidade com esse tipo de besta),
voltando como asnos ou feras peçonhentas.
Tenho
amigos tão carinhosos com bichos que sempre dizia: quero voltar gato do Zé Luís
ou da Fernanda.
Ora,
os animais humanizados demonstram muito mais respeito e carinho pelos que lhe
são próximos (humanos e outro bichos) que os humanos entre si. Há ciúmes, mas
não competições sujas por promoções de empregos, por carinhos maternos e
paternos, por heranças...
Ser
homem, ser bicho, ser mulher... Ser um objeto inanimado... O que somos durante
todas as horas de nossa existência? As impaciências, rangeres de dentes,
berros, afagos, inércia... Quantas máscaras... e nem todas exatamente humanas.
Como os bichos, sentimos fome, frio, calor, cansaço. Cagamos, urinamos e nos
sentimos amados ou rejeitados. Rejeitamos também, como cães que cismam com
determinada pessoa e nada os faz calarem-se ou serem amistosos. Gatos que se
escondem de gente ou pássaros e marimbondos que vêm fazer suas casas nas
varandas das casas, como a pedir proteção.
![]() |
Foto: Djair * |
E o
ser homem e mulher, o desejo do macho de sobrepor-se, e mesmo de ter o prazer
sexual e lidar mal com a rejeição do sexo oposto (ou até do mesmo sexo), não é
um impulso animalesco que tende muitas vezes a deixar a racionalidade e fazer
com que certos tipos partam para a agressividade e o desrespeito? Preferiria eu
voltar como um cão amoroso.
Em uma
canção de Caetano, ele fala sobre “o macho adulto branco sempre no comando”. A
perpetuação desse comando não é uma forma de territorialidade de certas
espécies? Como os que banem os outros machos do bando logo após esses amadurecerem
sexualmente?
Um
tio, ótima pessoa, afetuoso, cordial e aparentemente sensato, tinha por
preceito que ao completar dezoito anos os filhos tinham que sair de casa. De
qualquer forma. O instinto materno de minha tia, da proteção aos filhos,
levou-os à separação por isso. Pensamentos e instintos puramente humanos? Quem
equaciona essas sensações, modus vivendi
e decisões? Quem tem razão, o homem, o bicho, a mulher? Nem com muito álcool
nos copos sobre a mesa, e sentados às cadeiras de um cabaré, poderíamos (pelo
menos, eu não) chegar a deduzir esse teorema.
A
grande invenção criacionista deixa de fora as evoluções animais e nos coloca
num patamar próximo a um criador, sua imagem e semelhança. O quanto de animal
teria essa força criadora? No Budismo, no final, nos fundimos com o todo,
alguns xamãs indígenas prestam culto aos espíritos animais e a eles
incorporam... A religiosidade, criação humana, é tão diversa quanto as espécies
animais, e olhe lá, nem todas elas estão catalogadas, e das que estão, muitas
foram vistas pouquíssimas vezes e por um número reduzidíssimo de pessoas. Em
moda, atualmente, anda o termo pessoa tóxica... Seriam as pessoas nocivas? Mas
o termo bem poderia ser vírus, que estão no reino animal, como outrora era
comum chamar o fulano que não largava o “pé” do outro de carrapato. E quando a
pessoa é verborrágica? Fala mais que papagaio? Parecem umas galinhas?
Um
amigo querido, quando quer dizer que uma pessoa é feia, diz logo: “Encontrei
fulano, tá um “camelo”. E antes que perguntem-me porque camelo, como já o
fizeram, visualizem a face de um camelo, ruminando...
Reinaldo,
na sexta série, era chamado de porquinho, não só pela camisa nem sempre limpa,
mas também por ser gordinho. A filha da professora Isamar, um dia que foi com
ela ao colégio, riu-se muito e falou à mãe do apelido do colega, mas emendou:
“Ele é feio, parece uma menina.” Não sei o que a levou ao fazer o comentário,
mas foi um dia de risada.
Dona
Maria, da época da piscicultura, se referia a uma vizinha da fazenda como tendo
corpo de abóbora.
E
assim seguimos próximos dos animais, dos objetos, dos objetos inanimados...
Seguimos sendo homens, bichos, mulheres.
* Conjunto de objetos inanimados a adornar um bar no centro histórico de Lisboa