“Na rua do meu amor
Não se pode namorar:
De dia, velhas à porta,
De noite, cães a ladrar.”
A
quadrinha, que inspirou-me a escrever esta postagem, foi publicada
hoje, no facebook de Maria Gonçalves, amiga de Oeiras, Piauí. Oeiras,
antiga capital desse estado, ainda guarda joias como praças amplas e
belas e igrejas jesuíticas e outras tão singelas, tão belas e tão
caiadas quanto, além de um mercado peculiar, e se toma cajuína tão
cristalina e fresca que se esquece o sol que torna a paisagem árida...
Mas o texto não é sobre a cidade desta vez, nem sobre suas igrejas,
praças ou a enorme estátua da santa que, coroada no alto do morro, finge
abençoar a cidade. Mas é sobre as velhas que vigiam os namorados.
D. Carmela, a senhora que fazia nosso café aos tempos que eu trabalhava na Cinemateca, era o contrário, uma fã dos namorados. Naquele tempo, a Cinemateca ficava dentro do Parque público da Conceição,hoje chamado Lina e Paulo Raia, e da ampla sala da biblioteca eu tinha através da sala toda envidraçada a visão da bela flora do parque, palmeiras, eucaliptos e tantas outras árvores. O vigia das casas que acolhiam o acervo, mais do que preocupado com seus afazeres de portaria ou vigilância, preocupava-se com os namorados no Parque, o que não era de sua atribuição, e vivia sempre em rusga com D. Carmela que os defendia, pois era tão bonito ver os casais de namorados a namorar pelo parque, e eles não estavam fazendo nada demais, e ele não tinha nada que prestar atenção no que faziam lá fora... E assim passavam o dia, ele a sair pelo parque passando descompostura nos casais que interagiam mais, ela a defender o amor dos jovens. Mas nem todas são assim de cabeça tão aberta e romântica.
Uma certa vizinha que tive em Cezídia, invariavelmente à noite, ao ouvir passos na rua, corria e ia abrir uma brecha na portinhola da porta da frente, uma porta cinza em paredes rosas, que anos depois ganhou reforma e mudou de local, e agora me pergunto como será que ela faria então para ter atualizados os fatos sobre quem chegava e quem saía, com quem e a que horas...? Mas então àquele tempo saía eu sempre com uma grande amiga, que hoje já não é sequer conhecida, visto que a desconheço, tipo a música de Chico, o Buarque, não o de Assis, não confundam. “Quem jamais esquece não pode reconhecer.” Bom, mas deixemo-la de lado que nem lhe cabe aqui ou em quaisquer recordações, mas o fato era que a velha, dona da rua, e quem nem era velha apenas uma curiosa, sempre estava lá a olhar quando eu saía com esta ou com qualquer outra pessoa, ou quando minha namorada à época vinha em casa, enfim, a qualquer passo, meu ou de outrem, em direção às noites, até o dia em que não me aguentei e falei: Aqui é Djair, Fulana e Sicrana, vamos à beira-rio, comer picanha, quer mais alguma informação? A fresta deixou de ser aberta a partir de então, ou pelo menos a luz da sala se mantinha apagada...
Ao comprar uma casa em um bairro bem mais residencial, sabia da fama da
senhora que a habitava, Dona Ana, uma portuguesa já bastante entrada em anos, que
vivia solitária com o marido e para quem a casa tornou-se grande;
durante anos ela alugava quartos a comissárias de bordo, mas
intrometia-se de tal modo em suas vidas, que o negócio acabou por ir
água abaixo. Na rua, sua fama era de que não dormia, dando contas da
vida de um, outro e ainda mais alguns... Mas maledicência dessa gente
pois que ela não teria tempo para isso, coitada! Pois bem, fechamos o
negócio, e só depois de mudar percebemos o defeito na persiana do
quarto. A enorme janela de madeira podia ser deixada aberta apenas com
as abas ripadas, o que permitia o ar circular livremente, refrescando a
casa no verão ou, no inverno, fechando-se apenas os vidros. Era o quarto
da frente, o que a tal senhora ocupava, afinal era o maior da casa,
suíte, como chamam hoje os quartos com banheiro, que logo devem inventar
um novo termo em inglês para combinar com os espaços gourmets que se
tornaram as cozinhas e os livings que deram lugar às salas. Mas enfim, o
que havia de errado com a tal persiana de madeira da janela? Ela tinha
uma enorme abertura entre duas das ripas, exatamente à altura dos olhos
de uma pessoa em pé à janela, que ficava assim invisível a quem está de
fora. Pequenas marcas de mão (grude mesmo) comprovavam a abertura do
espaço para a visão, dando assim completa visão da rua e lembrando o
Muxarabiê que vi em Diamantina – uma sacada em treliça trabalhada onde
as pessoas de dentro (em geral senhoras, bem guardadas da vista do povo)
podiam apreciar todo o movimento da rua sem serem vistas.
Mas D. Lucia, que naquele tempo era conhecida em Cezídia como a “não se pode” e aí deixo que o leitor pesquise o folclore nacional para saber a história do “não se pode” a fim de não alongar ainda mais a prosa que já pode se tornar cansativa e morosa a quem chegou aqui, e volto a D. Lucia que pobre como Jó sustentava a casa lavando roupa pra fora e, reza a lenda, passava o tempo passando a roupa à noite... uma bala de mel pra você que já adivinhou... a tomar conta da rua... Aquela noite fazia um pouco de frio, inventamos de ir namorar na praça, e levei em uma sacola grande uma manta, que inclusive fora presente de uma tia, a Balola, e fomos lá... Na volta, a Não se Pode da rua lá estava em sua calçada, e eu vinha por um beco de atalho, passando ao lado do cemitério que logo ia dar em nossa rua. A vi na calçada, sentada num tamborete, fumando... a conversar com alguém de quem não mais me lembro... voltei sorrateiro atrás do passo dado, tirei a manta, envolvi-me nela, a cabeça, o dorso, parte das pernas, como hoje fazem os mendigos e craqueiros do centro de São Paulo, estiquei-me todo e saí meio fazendo um gingado, e a balançar ombros e sei lá que outras presepadas atravessei a rua em passo firme. Vi que ela se esticava toda para observar e tão logo atravessei o logradouro corri até a esquina, enfiei a manta no saco plástico e vim fazendo cara de assustado. D. Lucia de olhos arregalados me pergunta que marmota era aquela na rua escura e se eu tinha visto... E eu pondo as mãos ao peito, respondi: nossa, não sei não, mas quase morri de susto. E ela: você viu... os dentões deste tamanho, medindo com as mãos. E eu a confirmar isto, e mais as pernas cabeludonas que ela vira e os cabelos compridos que estes sim podiam ser as franjas da manta que, longas, pareciam cabelos com um grande esforço de imaginação... O resto só mesmo naquela fértil mente... Não faltou assunto no dia seguinte sobre o trem esquisito que por ali passara.
O que me enseja uns versinhos, para encerrar como se iniciou:
Fotos: Djair - A fresta de Don'Ana.
- Catedral de Nossa Senhora da Vitória de Oeiras
Não se pode namorar:
De dia, velhas à porta,
De noite, cães a ladrar.”
D. Carmela, a senhora que fazia nosso café aos tempos que eu trabalhava na Cinemateca, era o contrário, uma fã dos namorados. Naquele tempo, a Cinemateca ficava dentro do Parque público da Conceição,hoje chamado Lina e Paulo Raia, e da ampla sala da biblioteca eu tinha através da sala toda envidraçada a visão da bela flora do parque, palmeiras, eucaliptos e tantas outras árvores. O vigia das casas que acolhiam o acervo, mais do que preocupado com seus afazeres de portaria ou vigilância, preocupava-se com os namorados no Parque, o que não era de sua atribuição, e vivia sempre em rusga com D. Carmela que os defendia, pois era tão bonito ver os casais de namorados a namorar pelo parque, e eles não estavam fazendo nada demais, e ele não tinha nada que prestar atenção no que faziam lá fora... E assim passavam o dia, ele a sair pelo parque passando descompostura nos casais que interagiam mais, ela a defender o amor dos jovens. Mas nem todas são assim de cabeça tão aberta e romântica.
Uma certa vizinha que tive em Cezídia, invariavelmente à noite, ao ouvir passos na rua, corria e ia abrir uma brecha na portinhola da porta da frente, uma porta cinza em paredes rosas, que anos depois ganhou reforma e mudou de local, e agora me pergunto como será que ela faria então para ter atualizados os fatos sobre quem chegava e quem saía, com quem e a que horas...? Mas então àquele tempo saía eu sempre com uma grande amiga, que hoje já não é sequer conhecida, visto que a desconheço, tipo a música de Chico, o Buarque, não o de Assis, não confundam. “Quem jamais esquece não pode reconhecer.” Bom, mas deixemo-la de lado que nem lhe cabe aqui ou em quaisquer recordações, mas o fato era que a velha, dona da rua, e quem nem era velha apenas uma curiosa, sempre estava lá a olhar quando eu saía com esta ou com qualquer outra pessoa, ou quando minha namorada à época vinha em casa, enfim, a qualquer passo, meu ou de outrem, em direção às noites, até o dia em que não me aguentei e falei: Aqui é Djair, Fulana e Sicrana, vamos à beira-rio, comer picanha, quer mais alguma informação? A fresta deixou de ser aberta a partir de então, ou pelo menos a luz da sala se mantinha apagada...
Mas D. Lucia, que naquele tempo era conhecida em Cezídia como a “não se pode” e aí deixo que o leitor pesquise o folclore nacional para saber a história do “não se pode” a fim de não alongar ainda mais a prosa que já pode se tornar cansativa e morosa a quem chegou aqui, e volto a D. Lucia que pobre como Jó sustentava a casa lavando roupa pra fora e, reza a lenda, passava o tempo passando a roupa à noite... uma bala de mel pra você que já adivinhou... a tomar conta da rua... Aquela noite fazia um pouco de frio, inventamos de ir namorar na praça, e levei em uma sacola grande uma manta, que inclusive fora presente de uma tia, a Balola, e fomos lá... Na volta, a Não se Pode da rua lá estava em sua calçada, e eu vinha por um beco de atalho, passando ao lado do cemitério que logo ia dar em nossa rua. A vi na calçada, sentada num tamborete, fumando... a conversar com alguém de quem não mais me lembro... voltei sorrateiro atrás do passo dado, tirei a manta, envolvi-me nela, a cabeça, o dorso, parte das pernas, como hoje fazem os mendigos e craqueiros do centro de São Paulo, estiquei-me todo e saí meio fazendo um gingado, e a balançar ombros e sei lá que outras presepadas atravessei a rua em passo firme. Vi que ela se esticava toda para observar e tão logo atravessei o logradouro corri até a esquina, enfiei a manta no saco plástico e vim fazendo cara de assustado. D. Lucia de olhos arregalados me pergunta que marmota era aquela na rua escura e se eu tinha visto... E eu pondo as mãos ao peito, respondi: nossa, não sei não, mas quase morri de susto. E ela: você viu... os dentões deste tamanho, medindo com as mãos. E eu a confirmar isto, e mais as pernas cabeludonas que ela vira e os cabelos compridos que estes sim podiam ser as franjas da manta que, longas, pareciam cabelos com um grande esforço de imaginação... O resto só mesmo naquela fértil mente... Não faltou assunto no dia seguinte sobre o trem esquisito que por ali passara.
O que me enseja uns versinhos, para encerrar como se iniciou:
Naquelas ruas de Cezídia,
não se pode namorar,
pois o que as velhas não veem,
põem-se logo a inventar.
Fotos: Djair - A fresta de Don'Ana.
- Catedral de Nossa Senhora da Vitória de Oeiras