E naqueles tempos, em dias de calor, com aquele mormaço
de que só são dignas Cezídia, Macondo, Teresina e Cuiabá, nos
sentávamos à calçada, à beira da calçada dos fundos, já
quintal, ali, entre meio passo a passo e meio da porta da cozinha,
onde o calor do forno a dourar quitandas dava ao inferno um estatus
de paradisíaco oásis refrigerado. Lá fora, tentando captar a mais
leve brisa, sentíamos o cheiro das roscas, biscoitos, bolos, o que
fosse a quitanda do dia...
E o alarido que fazíamos com as tias e primos fazia
calar periquitos e enrubescia maritacas em bando a brincar em dias de
chuva. Enquanto eram dadas para uma nova rodada de pif-paf, um jogo
antigo como dizia Rosângela, as cartas se distribuíam.
Minha mãe, que não jogava, desaparecia para olhar a
fornada e, de repente, surgia à porta com uma enorme e redonda,
reluzente e apetitosa melancia. Partia-a ali mesmo, sobre uma tábua
de carne que pousava em um dos bancos, cadeira, ou mesmo à beira da
calçada, nossos olhos atentos à lâmina de aço que brilhava e
terminava em um cabo branco, contrastando com as mãos morenas e
firmes, de unhas grossas tingidas pelo esmalte rosa bem clarinho, que
ainda mais empalidecia diante da vermelhidão que o fruto tenro,
aquoso, doce e escarlate mostrava a cada fatia separada pelo punho
decidido.
Um filete de suco escorria e pingava na terra, pois não
seguíamos a moda de cimentar os quintais, e então agradecida a
mesma terra logo o sorvia.
Depois de fatiada em tamanhos mais ou menos iguais, os
nacos eram oferecidos com prazer e generosidade, a algazarra não
sendo interrompida sequer quando a gulodice das dentadas satisfeitas,
esganadas, trucidava a polpa que nos matava a sede e refrescava corpo
e espírito. Uns só comiam a polpa vermelha, outros, a molecada que
queria mostrar o quanto apreciava o regalo, o faziam até a parte
branca, numa disputa de quem mais aproveitava e assim muito pouco
sobrava às galinhas que por ali esperavam seu quinhão.
Uma tia sempre pegava a faca e fazia bonecos com a
casca – pernas, braços, corpo e cabeça... E dalí a pouco logo
começava o aperreio vespertino que sempre se impunha depois do
sacrifício do fruto vermelho: a vontade de fazer xixi.
Segundo minha mãe, e ali estavam minhas tias que não
a deixavam mentir e não perdiam a diversão de nos ver em apuros, o
primeiro a fazer xixi o faria por todos os que comeram a melancia,
não de uma vez, mas indo de instante a instante, um pouquinho por
vez.
Todos ríamos e passávamos a lenda adiante, nos
segurando, até que um não aguentasse mais e entrasse para ir ao
banheiro. A gargalhada era geral e, vitoriosos por não sermos os
primeiros, tirávamos nossa lasquinha de sarro, livres para ir cada
qual a seu tempo verter a água.
Era então que começava a escurecer, aquele momento
mágico onde os biscoitos e bolos finalmente ficavam prontos. Era a
hora de entrar para o banho antes da janta e continuar a ser feliz!
Foto: Djair - Melancia na casa de mamãe, nessas últimas férias, ainda a mesma faca, o mesmo sabor.
Foi nessas que Proust acabou por escrever seis livros :)
ResponderExcluirGrace T. Crawford
Faltam 05 então rsrs.
ExcluirSe tranca num apto em Paris, com paredes revestidas de cortiça, que ce termina rapidim,
ExcluirGrace T. Crawford
Adoro suas histórias fantásticas !!!!! Devaneio por elas !!!!! Obrigado !!! ��
ResponderExcluirObrigado Anônimo. Sempre bom ter esse retorno! Grande Abraço
ExcluirTexto impecável. Parabéns :)
ResponderExcluirObrigado! :)
ExcluirQue vontade: da melancia e de escrever.
ResponderExcluirPatrícia Carla Santos
Fico feliz de ter conseguido com o texto suscitar ambas as vontades, é isso que faz valer a pena! Obrigado!
ResponderExcluirOlá, Djair!
ResponderExcluirCom que destreza você delineou o "perfil" de uma melancia, fruta que, "coitadamente", não faz parte do meu gosto pessoal (olha que eu adoro quase toda fruta que conheço!...).
Adorei o detalhismo e senti o sabor daqui, e confesso que até me deu vontade de saborear uma, mesmo sem ser minha fruta predileta, como acima mencionei.
O título não poderia ser melhor - "Magalis" - e foi ele quem me atraiu até o post por ser ela, a Magali (aí, sim!), minha personagem da Turma da Mônica favorita! (Mas não por eu comer demais, viu? rsrs)
Beijos!!!! :)
Obrigado Mary!
ResponderExcluirFelicíssimo com seu retorno, afinal, se consegui despertar sua vontade para um fruto que não é o seu preferido, isso sim, é um grande feito!
Beijão!
Delicia de texto. Há tempos que que não venho aqui. Preciso voltar mais vezes. Abraço.
ResponderExcluirPrecisa mesmo, estava sentindo sua falta! :)
ResponderExcluirE a felicidade se faz assim,em momentos simples de puro encanto e poesia.
ResponderExcluirBeijão,Dja!
Dani.