segunda-feira, 27 de abril de 2020

Juninho


                Lembro que Juninho escreveu-nos uma carta, quando ainda morávamos em Coronel Fabriciano, MG. Vinha em um papel amarelo, tipo papel pardo, também mais grosso que uma folha de caderno; a caligrafia era bonita, falava de saudades do macarrão com frango de minha mãe;  na época achei-o guloso – e rio disso agora. Até porque eu cá por mim também adorava a comida da tia Lourdes, o brócolis, com alho, no azeite que ela faz deixa-me a salivar como um cão do Pavlov até hoje. Na carta ele também perguntava de todos nós e ao final mandava lembranças dos tios, da irmã Gislaine, de Bob e Babi, os cães basset, e do Pixoxó, o pássaro que tinham na época. Provavelmente já não existiam nem os jabutis nem o aquário redondo repleto de conchinhas onde habitavam os kinguios, ou os teria mencionado.
                Essa carta é uma das poucas lembranças do meu herói da infância. Meu primo, naquela época o preferido, e por ter ficado tanto na memória, acredito ainda que o seja, até porque o contato com os demais também não se faz presente, e de alguns, se encontrar na rua, sequer os reconhecerei, e acredito, nem eles a mim. E tem até um a quem se eu encontrar, troco de calçada. Mas de Juninho tenho saudades, de quem foi, do que vivemos, de quem acredito que é. Da vontade que tenho de conversar sobre nossos pais e suas histórias.
                 Lembro da vez que ele, morando na casa da avó materna onde íamos tomar banho no riacho que se arrastava de uma cascata lá próxima, fez-me uma pipa; era feita de papéis rosa e azul, que seu avô trazia da antiga Fábrica Santista de papel, conhecida como fabril. Àquela época, todos os funcionários ao fim do mês, ou início, já não sei, vai ver que era no meio, ao final da primeira quinzena, recebia um rolo de papel colorido, mas isso pouco importa, importava-me a pipa, feita por ele, que tentou ensinar-me a empiná-la.  Fracasso total, e não foi culpa do professor, mas do aluno, até hoje sou ruim para essas coisas, fato, reconheço, que dirijo mal, nado porcamente e não tenho ritmo sequer para bater palmas. Então ficávamos na brincadeira, ele subia a pipa, e passava-me para que eu a empinasse. Uma vez ou outra dava certo enquanto ele segurava minhas mãos pelo menos, depois invariavelmente ela caía. Sem reclamar, lá ia ele de novo alçá-la ao azul, verdadeiramente celeste, que fazia aquele saudoso dia. Corríamos soltos, Gislaine, Juninho, de camisa branca. Lembro de nossas mães sorrindo, alegres com nossa brincadeira de correr pelos extensos terrenos que margeavam o rio, que hoje virou um riacho, assoreado e cheio de pontos de esgoto clandestino.
                Mas antes mesmo disso, quando ia em férias à casa deles, quando eu era ainda menor, contavam-me as histórias dos livros Disney, que eles tinham, e foi com ele e Gislaine que fui a primeira vez ao cinema, isso já contado em outro texto. Inclusive de como íamos à praia em frente e catávamos conchinhas...
                Já a lembrança mais antiga que tenho é aí pelos 5 anos, casei com Gislaine, Juninho era o padre, ela com uma lata de cera, vazia, na cabeça, por sobre uma toalhinha de crochê de minha mãe, que fazia às vezes de grinalda. Tudo isso aconteceu na varanda da casa da rua Piauí, que já não existe. Lembro que por essa época meu pai tinha um fusca azul, em cujo câmbio de marcha havia um pequenino caranguejo como enfeite. Íamos sair para passear, mas, nós, crianças brincando no carro, conseguimos travar a direção, o que deu muito trabalho para os adultos descobrirem o defeito e o passeio mixou. As lembranças são embaralhadas, mas não são assim todas elas? Não apagamos alguns traços e colorimos alguns trechos sempre que as rememoramos?
                Ao nos reencontrarmos década depois, ele já era um esguio e belo rapaz que deixou para trás a obesidade da adolescência, e agora o adolescente obeso era eu, sem nunca mais deixar de sê-lo (aliás, deixei por alguns anos enquanto frequentei os Hare Krishna e fui vegetariano, mas essa é outra história, de mais de década depois). Sempre esperei que Juninho fosse ser aquele amigo que sempre me faltou, mas só devo tê-lo visto de adulto duas vezes. Na primeira, tendo voltado a morar em Cubatão, visitamos seus pais e ele apareceu por lá muito brevemente. Da outra vez, ele esteve em casa, viera com um carro emprestado de um amigo e, se a memória não me mente, bateu o carro na volta, ou mais tarde. Estava com um grupo de amigos e namorava uma moça aparentada ou descendente dos condes de Santos, seriam os Teixeira, da loja de antiguidades? Não sei, até porque no Brasil as comendas não eram hereditárias. A visita também durou pouco, acho que apenas passava vindo da casa da avó, que morava mais acima, no mesmo lugar onde antes brincávamos.
                De outra feita, tive a impressão, também, de vê-lo num ponto de ônibus. Passei em frente, com certeza se era ele, não reconheceu-me, e eu, sem ter certeza e transbordando timidez, não abordei. Fiquei com ele em minha memória como meu herói e amigo da infância, que escreveu-nos uma carta em um papel amarelo, com caneta azul e um trecho em vermelho. E que permanece um primo querido, o Juninho.


Foto: Ricardo S. R. Costa.
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