Sempre
me senti perturbado com a subserviência.
Diferente
daqueles que protestam por perder regalias e que ainda não se
conformaram com a abolição da escravatura, me incomoda ver o outro
a trabalhar enquanto nada faço. Mas também é lógico: gosto de ter
quem faça serviços que não estou a fim de fazer, e para isso
contratamos uma doméstica para uma jornada de 06h, três vezes por
semana (registro em carteira, salário decente – o dobro do que uma
conhecida paga a sua por jornada de 08h, em uma jornada de 5 dias
semanais).
E
assim livrei-me do fogão; não que não goste de cozinhar, gosto,
mas sem o compromisso do “ter” que fazer. E livrei-me também da
maior parte das tarefas de limpeza da casa. Posso me dedicar com mais
calma às plantas e pude, por exemplo, ir à praia antes de sentar
aqui para escrever esse texto sobre algo que me incomoda há dias,
com sentimentos antagônicos.
O
desejo de agradar àquele que seria o patrão (termo que me
perturba), a levou há poucos dias a perguntar-me se poderia lavar
meus tênis.
Estupefacto,
perguntei: _Como? e ela explica:_Aqueles tênis brancos, posso lavar?
Respondi
ainda meio surpreso e constrangido que sim.
_Ah, sim, claro...
Bem,
desde o fim da adolescência não sou de lavar os tênis; como sempre
disse: eles perdem a personalidade, a história de por onde andaram e
as marcas do que pisaram...
Lembro
de um namoro distante, que foi pouco mais que um flerte, onde a
pessoa ao chegar em casa certa vez, também lavou-me um par de tênis
e engraxou-me um coturno que eu adorava. Lógico que fiquei feliz
naquela ocasião, e nesta agora também me agrada tê-los tão
brancos como quando foram adquiridos, no entanto não me conforta a
ideia de alguém fazê-lo por mim. Ainda que paga para isso, não
estava combinado que esta seria uma das tarefas da doméstica.
Assim,
a cada olhar, enxergo nela minha Macabéa*.
Provavelmente
eu não sirva para ser patrão. Nunca me senti bem em olhar para
alguém trabalhando enquanto eu apenas existiria, ocupando um lugar
onde deveria ter ar. Coisa que a muita gente faz muito bem, inclusive
no trabalho, onde deveriam honrar seus salários, mas se fôssemos
falar sobre os que só produzem fezes, urina e suor, a crônica seria
outra. E os bois teriam outros nomes.
A
Macabéa fala pouco e baixinho, e eu, que já não ouço muito bem,
tenho que por vezes pedir que repita. Senta-se à mesa conosco às
refeições; em casa sempre foi assim: lembro de meu pai pedir certa
vez à minha mãe que dispensasse uma de nossas contratadas por ela
se recusar a comer conosco. Em casa de alguns amigos, elas nunca o
fazem. Não são parte da família, não se tornam amigas, são
mantidas à distância. - E aqui o ponto é mais longo para uma
reflexão maior do que eu teria capacidade de verbalizar.
*Vide
A Hora da Estrela, LISPECTOR, Clarice.
Foto:
Djair -
Caríssimo, este realmente é um tema que cala fundo na alma de quem se importa com o outro. Adorei o texto e espero que você continue a dissipar essa névoa que encobre e confunde essas relações. Ao momento de constrangimento costumo emendar a perspectiva do "chão de fábrica": cada trabalhador tem a sua função e é remunerado por isso. Exigir ou fazer além disso? Aí está de novo a falácia da casa grande se impondo.
ResponderExcluirAbraço grande,
Uma coisa que sempre entendi e' que as pessoas que cuidam do nosso ambiente de trabalho (mais acentuado em nossa casa) e' que nosso desempenho, nossa qualidade de vida, estao diretamente ligados ao trabalho desses profissionais. Entao, se eles nao forem tao importantes quanto, diria que sao ate' mais importantes que no's. Imagine-se trabalhando sem a colaboracao do pessoal da limpeza, a "tia do cafe' ", portaria,..... portanto, sao efetivos COLABORADORES.
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