Entre
as coisas estranhas do ser estão as recordações; como diz minha
mãe, se o espiríto não me engana e a verdade não me mente, foi em
um poema que li que “os acontecimentos eram como conchinhas na
praia a serem recolhidas por uma criança. Ninguém jamais sabe quais
serão as escolhidas e guardadas como um tesouro”.
Hoje
acordei lembrando de um menino, cujo breve contato se encrustou em
minha memória e que, hoje, insiste em ali brilhar, daí vem o texto
que ora escrevo...
Depois
de cairmos no conto da Estrada Real (sobre a qual se dizia haver toda
uma infra-estrutura que não encontramos, pelo menos não naquele
trecho após Mariana no sentido à Diamantina), resolvemos sair dela,
e encaramos a Serra do Cipó, conforme narrei aqui em outra ocasião.*
Pois
bem, quase chegando à cidade do Serro, o pneu do carro estoura em
uma estradinha de mão dupla, sem movimento, sem iluminação. A
noite já havia caído, sem lua, sem estrelas, apenas com o breu...
E lá fui eu cortar galhos para indicar o entrevero, já que o
triângulo do carro não me parecia que ia dar conta ali, e antes que
o leitor mo pergunte, não, não tínhamos sequer uma lanterna no
carro.
Perdendo-me
de vista, Zi, o companheiro de viagem, gritava por mim, onde eu
estava, o que estava fazendo, e eu a explicar que estava sinalizando
a estrada retornei. Pois bem, com o anjo da guarda de plantão, esse
foi o pneu mais rápido que já troquei na vida. Gastei mais tempo em
sinalizar a estrada que com ele em si.
Conseguimos
chegar ao Serro, que se mostrou uma surpresa tão boa que acabei
gostando mais de lá que de Diamantina. Não pelo melhor doce de
leite que já comi, não pelo arroz tropeiro de lamber os beiços com
aquele torresminho que só os mineiros sabem fazer, nem pelo queijo
saboroso, de que não foi tirada toda a gordura a fim de se fazer
outros produtos, mas pela acolhida naquela pousadinha simples, onde
havia sim vagas depois de tantas peripécias e onde pudemos tomar
banho quente e nos secar com toalhas cheirosas, de gente que estava
ali tentando progredir na vida e mais que uma pousada ofereciam,
marido e mulher, uma conversa solta e sorrisos acolhedores.
A
chácara do Barão do Serro estava em reforma, mas a casa dos Ottoni,
transformada em um pequenino museu foi um encanto. As igrejas também
são belas e as pessoas nas recepções desses lugares oferecem
histórias e sorrisos sem cobrar nada, diferente de Mariana onde os
guias nas igrejas vestem camisas com logotipos da prefeitura mas
cobram pelas caras e você só percebe que caiu no conto depois
quando no final o preço é dado. Como vínhamos já de Ouro Preto,
São João del Rey e Tiradentes, onde o serviço não era cobrado,
nos sentimos lesados em Mariana. Felizmente, o Serro nos fez esquecer
o engodo.
Mas
lembrei do Serro ao lembrar de um menino. No dia seguinte à chegada,
fomos a uma borracharia para fazer a compra de pneu novo e a
realização de uma cambagem e alinhamento, já que na saída de São
Paulo, na rodovia Fernão Dias, logo no começo da viagem, um pneu
estourou e, segundo o mecânico, a roda que raspou no “guard
rail” estava a “comer” o estepe de troca, o mesmo que se
foi na entrada do Serro. Enfim, peças trocadas, serviços feitos,
com o primeiro dia de Serro a passar-se ali na oficina, esperando e
de prosa com borracheiros e mecânico, esse último indicou um
restaurantezinho um pouco adiante do posto, de propriedade de uma
irmã sua, o qual era simples de tudo e com uma comida bem saborosa.
Quase
ali chegando, me vem um menino correndo em minha direção.
Nitidamente tinha síndrome de Down. Devia ter uns oito, nove anos,
não mais, correu em minha direção e abraçou-me... como se eu
fosse um velho conhecido, um parente, amigo, ou o que o valha.
Encantou-me, a ponto de anos depois, como agora, eu lembrar-me dele e
a partir daí sair esse texto.
Depois
do abraço, a surpresa: ele me pediu para pagar-lhe uma coxinha; ou
seja, mesmo Down, mesmo criança, ele já sabia manipular.
*
E a vaca não foi pro brejo.
Foto:
Internet. Disponível em:
Tb quero comer desta comidinha de verdade e conferir o toque das toalhas cheirosas!!!
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