Tenho imenso gostar pela escultura de Giacometti
“O cão”; talvez seja a escultura que eu mais goste. Além do cão retratado,
animal que tive muitos, durante infância, adolescência, fase adulta, e agora,
na velhice, também tive gatos, jabutis, peixes de aquário e até um tamanduá que
recebeu a alcunha de Marina Correia Lima, em homenagem à cantora que eu tanto
apreciava à época.
Mas “o cão” de Giacometti me fala mais através
de sua história. Segundo me chegou, e já não sei de onde veio a informação (ora
leitor, faça seu trabalho de casa e pesquise; a mim, basta a lembrança
verdadeira ou não, mas que se tornou afetiva junto a imagem da peça), o
escultor teria dito de sua obra que era um autorretrato. Um dia de chuva, ele
todo molhado, sob uma marquise, vê passar um cão, e pensa: “esse cão sou eu”, molhado,
humilhado, cabisbaixo... E ao chegar em casa faz a escultura. Coisa mais, coisa
menos, foi isso que li. E assim identifiquei-me. Quantas vezes também não me senti
um cão! Tanto o cão humilhado, como o cão raivoso, o cão terno, carente,
desprotegido, agressivo... Um cão.
Foto: Djair - Parque dos Budas - Bombarral - Portugal |
“Animal tem que viver como animal, quando não
vivem como tal, se matam.” A pichação em Santos – SP, nos anos 1980, nunca mais
saiu de minha cabeça. Fica ali adormecida e vez em quando aflora. Aflora quando
vejo nossa animalidade, em mim, no próximo, em amigos, familiares...
Animal tem que viver como animal...
E como estamos próximos a eles, sim, próximos
porque nos esquecemos que também somos um, o tal de animal racional, que
destrói tudo a sua volta, esquecemos nossa efemeridade e construímos ermidas
que atravessam séculos, estradas que ligam povos, mas há que se cobrar pedágio que
enriquece alguns... Quem? O rei leão? Afinal, o rei dos animais recebeu esse
título do homem, que dizima o meio ambiente deste e o seu próprio, assim destruindo
a eles e a si, e a toda a cadeia próxima, não só a animal, mas a de todos os
reinos... Ai de novo: a palavra real. Só o homem, em sua animalidade, tem essa
necessidade de coroar cabeças e espécies. Talvez pela fragilidade de sua existência,
senão o mais frágil o mais necessitado de cuidados de todos os reinos. E assim
cria armas e formas de defender-se, mais amiúde essas formas de defesa são a
forma de extermínio ou ameaça do outro. Outro homem, outro bicho.
O cão de Giacometti, os cães de Pavlov, o cão
dos Baskerville,
o melhor amigo do homem. O cão talvez seja o animal mais próximo e mais
presente ao homem, em todos os estados já descritos acima, e outros que fogem à
falta da memória de elefante que já não tenho. Famílias tem cães por conta das
crianças, alguns pais e mães metem medo às crianças dizendo que o cão morde; sem
conhecer o cão, já o julgam e condenam. Que outro animal condena a sua espécie e
as alheias?
Essa “superioridade”
autoproclamada é mesmo um complexo animal de inferioridade às avessas. Uma constante
afirmação de que o animal é o outro, pois julgamento e preconceito, se o homem não
for a única espécie que os tem por distinção, é das raras. Só conheço o
preconceito animal em O Pássaro Pintado, de Jerzy Kosinki, onde o autor narra
que, como diversão, uma personagem pega um pássaro e o pinta de outras cores
diferentes à sua espécie e depois o solta. Ao cantar como os seus, esses não o
reconhecem e assim batem-lhe até à morte. Essa metáfora quanto à não aceitação
do outro, ao deslocamento que se sente em certos habitats sociais, é perfeita.
Que outro animal pratica bullying?
Importa-se se o seu igual é mais gordo, ou baixo, ou de outra cor? Se tem uma
preferência sexual diferente da sua?
O
homem reage a isso com ferocidade... “Ferocidade”, algo condicionado às
feras... Ao animal... E o quão ferozes podemos ser... Pedro Nava disse uma vez,
naquela minha década preferida, os anos 1980, que achava o homem o pior animal
da criação e que tinha essa impressão do próximo, e de si mesmo. É outra das
frases que foram tatuadas em minha memória que já está a falhar. Aliás, isso é
algo que preocupa-me e mete-me medo. E o medo não é mesmo um instinto animal? O
instinto mãe de toda a agressividade? E lá vem de novo o círculo, agressividade
seria um instinto... animal... Círculos não tem ponta e, por isso, voltamos aos
temas.
E o tema dá panos pra manga, daria para
cobrir um circo de tão extenso é o tecido e entremeações de sentimentos e
reflexões sobre o homem e os bichos. Inclusive, o objeto escolhido para a hipérbole,
o circo, é ele mesmo a casa de homens e animais postos em exibição, uns como
talentos, outros como feras domadas... Nenhum outro animal submete outra espécie
a seus caprichos senão o homem, o mais feroz... Ops, submetem sim. Os cães
submetem seus donos, com sua fidelidade, carência e demonstrações de afeto. Ou
os gatos, companhia das mulheres solitárias, segundo alguns. E quem poderia
tecer um comentário tão maldoso e difundi-lo a ponto de torná-lo quase um senso
comum em determinados círculos, senão a besta humana? Como disse Fernando
Pessoa a respeito desta: “Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem”, que
entre todas as espécies é a que ferra e marca a sua e as outras espécies!
E se
fossemos continuar como as citações em uma tese, poderíamos partir para a “vida
de gado” do “povo marcado” de Zé Ramalho, e tantas outras. Mas esse animal que
digita cá está cansado, assim como o leitor pode também já estar irritado com
esse texto que nada diz além do óbvio e que ulula constante sobre o tema.
Encerremos aqui, é o que diz o bom senso, aliás, criação humana, o bom senso que
distingue o homem dos animais. Ou não...
Obrigadooooooo amigo, pelo texto... Fantástico. Espero fazer uma análise a altura desta magnífica escrita.
ResponderExcluirEu que agradeço, não fosses ter pedido para escrever sobre isso, talvez não tivéssemos texto essa semana. Abraço grande
ResponderExcluirAnos 80...vc me lembrou da década em que li 'A revolução dos bichos'...onde cada bicho lembrava um tipo de personalidade humana..... Bjss Dja!!!
ResponderExcluirSim, mas os bichos também tem personalidades próprias dentro de suas espécies. Por mais que o Ildo Rosa afirme que não.
Excluir