segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Uma caminhada na Amadora

 Naquele dia, à tarde, como sempre fomos dar uma caminhada pelas ruas da Amadora, antes de pararmos num café para descansar e comer um travesseiro ou um nata. Pegamos um caminho que ainda não tínhamos feito e acabamos por ir dar num bairro não muito favorecido, embora os bairros novos ao redor, todos, fossem de uma classe mais privilegiada que aquela que ali habitava, seja pelo estado das casas, seja pelo entorno e serviços (ou a falta deles) de embelezamento da junta de freguesia.

Uma casinha chamou-nos a atenção, não pelo atulhado de coisas que havia no quintal ou pela simplicidade dela, mas pela beleza das plantas, uma em especial, repleta de flores amarelas no que parecia ser uma suculenta enorme. Paramos ali a apreciar, eu, lógico, cobiçando muito uma muda da tal planta. Logo uma senhora, bem adiantada em anos, uma velhinha mesmo, aparece dando bons dias. Comentamos da planta e ela engaja uma longa conversa sobre plantas, que esvai pelo marido que perdeu e pelo filho que veio fazer-lhe companhia. É nítida a falta de interlocutores, e assim lhe damos atenção ao ouvir sua realidade e até como um carinho que seria ouvir-lhe. Chega mesmo a fazer indiscrições não apropriadas sobre o quanto recebe de pensão, o que, para cá, deste lado do Atlântico, seria um grande risco dizer, e mesmo lá, creio...

Conversa adiantada, fazemos menção de seguir o passeio. Foi quando ela diz que tem lá três latas de atum, se não queríamos alguma, a qual nos daria com gosto, e tais... Recusamos, mas aceitamos os ramos de ervas para chá, oferecidos, que ela vai a colher ali mesmo no jardim. Hortelã é que agora lembro-me, mas havia outras.

Seguimos o passeio, proveitoso em todos os sentidos, numa tarde alegre e embevecida pelo sorriso e afeto da boa velhinha que assim eternizou-se em minha memória.

 

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Aposenta-te!!

 Celina trabalhava no balcão de empréstimos de uma biblioteca. Um dia, sim, sempre há um dia, acabou de atender um usuário (Vânia é que tenha tremores com a palavra usuário!), e recebeu em seguida uma ligação do Recursos Humanos, que era para ela óbvio, e do outro lado disseram algo mais ou menos assim: “_ Acaba de ser publicada sua aposentadoria a partir de hoje no Diário Oficial.” Celina desligou o telefone, sem falar nada foi até o armário, pegou sua bolsa, pôs aos ombros, caminhou até o balcão de empréstimos, sentou-se nele, passou as pernas pro outro lado e foi embora, assim, sem dar tchau a ninguém. Viva!!!

 Zizi, a cada vez que estava a chegar perto da aposentadoria, o governo mudava seus planos e lá lhe tascava mais três anos de trabalho às costas. Mas um dia, dos "grilhões que lhe forjavam da perfídia astuto ardil" houve mão mais poderosa e aposentou-se o Zizi na primeira oportunidade, ainda que a perder dinheiro. A melhor coisa que ele já fez, segundo o próprio, pois como sempre reafirma, é preciso saber a hora de sair, melhor sair enquanto ainda querem que você fique e não quando já querem lhe ver pelas costas.

Zuleide, eu a conheci na festa de sua aposentadoria, fez muito que bem. A festa foi boa, apesar que Cícero e eu tentamos tirar o capeta do corpo de uma moça que lá estava, mas não adiantou, ela continuou possuída e só piorou. Sai capeta!

O Gaúcho da Fronteira aposentou-se. Sabe Deus à custa de quantas asas de morcego obteve uma chefia pra continuar trabalhando e recebendo por fora pelos serviços que fazia em horário de trabalho. O local de trabalho era seu escritório particular; afinal, o cidadão de bem sempre confunde o público com o privado.

Outros não pensavam como uns, nem agiam como tais.

Seu Manoel arrastou a aposentadoria até quase não mais poder, anos e anos até resolver-se. Quando finalmente o fez disse que agora ia aproveitar a vida e viajar, conhecer lugares, passear bastante. Um mês depois bateu a cassuleta e foi aproveitado pelas minhocas do cemitério.

Regina, talvez por viver só, não se aposentava. Entrava ano, saía ano, e sua vida era o trabalho e casa. O cancro veio e ela saiu do trabalho pro hospital. Morreu sem aposentar-se.

Cibopre não se aposentava porque queria ser chefe. Também não trabalhava, enrolava, e ria-se disso; seria aquele tipo de chefia clássica que sempre diz que não dá conta de tudo que tem pra fazer, porque não o faz. Só a doença o fez aposentar-se, sem conseguir o intento do cargo superior.

Queirós não se aposentava, nem trabalhava, porque gostava de atormentar todos a seu redor, e talvez porque não tivesse computador para jogar paciência em casa. Mas participava de todo e qualquer conchavo e criticava a toda e qualquer proposta de trabalho, serviço ou difusão que fosse apresentado.

Chatilde não se aposentava porque não ia aguentar conviver com o marido já aposentado dentro de casa.

 Um monte de gente não se aposenta por dizer-se que não está preparada... Eu, não sei se chegarei a isso, mas preparado estou desde sempre. Tantas viagens a fazer, gente a conhecer, plantas pra cuidar, livros a ler, filmes, peças de teatro, concertos... Tanto e tanto que nem daria conta. Mas pronto pra isso, sempre estive.

 

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Dislexia

 Dizem que para um bom entendedor, um ponto e um risco é Francisco. Eu, que nem nesse santo sou chegado, de tanto que lhe esparramaram o nome por tanto agregado esse mundo e que em nada tem com ele a ver, nunca o fui.

Do ponto, só sei que oferece risco.

Já confundi muito sorriso com amizade, já acreditei que tanta gente era o melhor amigo ou amiga.

Só faltei confundir isso com dor na bexiga, quando era ainda menos que isso.

Já pensei que amizade se pagava com respeito.

Já acreditei que amizade era favor.

Já emprestei dinheiro a gente que nem precisava, tipo o Russo, que “achava que era prova de amizade se alguém levasse embora até o que eu não tinha”... E assim fui roubado, enquanto era abraçado, muitas vezes.

Se pra bom entendedor, meia palavra basta, nem bom leitor eu sou, pois muitas vezes não compreendo frases inteiras, orações, parágrafos, capítulos... Ai de mim que não domino essa arte. Talvez por isso, o enfarte.

Não compreendo a vida, essa a que tanta gente se apega, por mais inútil e vazia que seja. Que medo é esse? Morrer? Por que não, se é inevitável? Oh morte, sê bem-vinda.  Quem sabe não seja ela a professora que vai ensinar que Francisco não passa de um ponto, no máximo um risco.

 

terça-feira, 19 de outubro de 2021

A Tosse

 

Curut, curut, curut...

A Tosse não deixa as palavras serem pronunciadas

Também ensurdece ainda mais os ouvidos – que já não são bons.

O peito arde

E dá sentido ao coloquial “arder em brasa”.

O único conforto é estar em casa

E a rima pobre começa, como a querer fugir da prosa que norteia meus textos, mas uma rima só não basta, assim como nem, apenas, um chá alivia a garganta e o peito.

Mil recomendações de cada um, e mil e um dão as receitas de cinco mil chás, e sucos variando em torno de limões, cebolas, alho, gengibre e o onipresente mel. Infusões, maceramentos e tal.

Há quem lembre o vick vaporub, o suco tonificante das imunidades... Estranhamente ninguém recomendou escalda-pés.  – Curut, curut, curut... _ Sinal de que algum conhecimento vem sendo perdido.

Mensagens de afeto, cuidado, carinho... Outras só pra constar mesmo, como quem diz “tiquei!”.  E malditas figurinhas nas redes... Ai de mim!

Como o peito, a garganta também queima, e desta feita não é azia, mas o ferimento que o ar expulso do peito faz ao passar por ela rumo a boca e narinas, como quem diz: “Não quero ficar dentro de ti!”.

Curut, curut... é seca a tosse. O ar seco, que queima as plantas, saído de nós queima gargantas. Não são brisa, mas tornados que se formam nos pulmões. Pequenos tornados à   guisa de torturas.

É assim... Curut, curut, curut, ou em tempos que aqui tudo beira aos anglicismos, cof, cof, cof pra você.