A
recordação mais antiga que trago - e talvez já tenha falado disso,
pois parece que já contei tudo o que tinha a dizer - possivelmente é
a de minha mãe a me comprar lanche numa lanchonete, onde havia um
enorme aquário cujos peixes me encantavam. Talvez por isso a partir
dos nove, ou dez anos de idade, nunca mais tenha deixado de tê-los,
senão por breves hiatos. Mas o texto de hoje não é sobre eles, nem
sobre as duas ciganas exóticas que naquele café estavam e que me
chamavam atenção com seus muitos colares, brincos e pulseiras,
anéis e roupas coloridas, as quais me lembro ser saias enormes,
enriquecidas com muito pano e de um vivo cor de abóbora de fazer
inveja ao próprio fruto.
A
cidade era São Mateus do Sul, no Paraná, e como já enunciado,
dela pouco me lembro; o que sei, na maior parte, é o que me
contaram... Que dei banho numa galinha, com café, e de garrafa
térmica em punho fui surpreendido em plena ablução… Que não
gostei de meu tio Antônio, quando lá esteve a nos visitar, vindo de
carro, do Maranhão, naquele distante final dos anos 1960, numa época
em que o país se fazia com homens e estradas. Pela narrativa,
atentei contra sua vida, jogando nele, que estava deitado em uma
rede, uma faca de mesa. Numa foto daquele período, ele ostenta uma
cabeleira que já não possui há muito tempo e óculos ray-ban
a compor sua pinta de galã.
A
escola, ou melhor, o jardim de infância era de freiras, e onde as
lembranças não alcançam, fica a provar uma outra foto, que
provavelmente minha mãe ainda tenha, na qual estou ali e entre
tantas crianças me destaco por ser o único de cabeça baixa e mão
na testa, num sinal claro de cansaço. Aliás, esse cansaço trago
desde aqueles longínquos três anos de idade. O uniforme verde,
calções curtos, naquele tempo a nos diferenciar dos púberes, que
mais tarde se convencionou chamar de adolescentes. Na ponta da foto,
a irmã baixinha, cuja estatura, próxima à nossa, dá a explicação
à alcunha. Segundo os relatos paternos, eu a chamava de irmã
“bafinha”, por não pronunciar corretamente o “x”. Vai ver,
desde aí, já teria problemas com o efe, vai saber, mas chegaremos a
isso no primário.
As
reminiscências escasseiam e passam pelos dois coleguinhas vizinhos,
da casa ao lado, com quem muito brincava, e em dias de chuva a
diversão era nos escondermo-nos de nossas mães. Dentro de casa, e
dos risíveis esconderijos, ficávamos a gritar a nossas mães,
repetido a frase provocadora e mentirosa: “Tô no barro, tô no
barro!!!” Lembro da enorme palmeira e seus coquinhos-catarro no
quintal lateral, do sobrado enorme onde moramos, antigo prédio dos
correios, e que quando dali fomos embora, meu pai passou a procuração
de venda a um amigo a quem nunca mais viu, num dos muitos golpes que
tomou pela vida. Ali, ele também comprou as ações do Bradesco, -
que me valeriam, uma década depois, por alguns anos, as camisetas
brancas com o nome grafado em vermelho - fruto da amizade com o
vizinho gerente, nosso vizinho com cuja filha eu também brincava. Da
casa desses só me lembro de uma enorme escada.
Era
eu então uma criança muito quieta; ainda trago na testa a
cicatriz de quando derrubei por cima de mim a cristaleira de minha
mãe. Seu maior medo era que eu caísse da escada, onde segundo ela
conta, do alto desta, uma vez gritei que a vó, há pouco falecida,
ali estava e teria me dito algo que ela, imperdoavelmente, não se
recorda. O galinheiro no fundo do quintal é a única lembrança que
tenho de animais em casa; não devíamos ter cachorro já que Feijão,
o cachorro marrom de quem eu tomava a comida meses antes, ficara no
Rio de Janeiro, em Resende, quando nos transferimos de lá. Mas essa
história já está registrada no blog em outro causo.
Nessa
mudança, meu pai nos levou no Fusca, e na estrada, em limites de
velocidade da época, não teve tempo de frear e atropelou um
cachorro que surgiu repentinamente na estrada. Ainda segundo minha mãe, só houve o tempo de dizer: "Segura o
menino que vai bater." Com um braço me abraçou forte e com o outro segurou o apoio de mão que existia nos fuscas, conhecido popularmente (ao menos o foi nas décadas seguintes) como: "puta-que-o-pariu". Sim, naqueles tempos criança também viajava livremente no colo, e no banco da frente. O estrago no carro foi
grande devido a velocidade a ao impacto. O pobre cão que vagava pela estrada foi-se
e ficamos nós.
Foto: Djair - Uma das tantas estradas percorridas nessa vida.
Como não lembrar da infância, ela que nos agrega tantas coisas. Djair, continuo e sempre continuarei lendo seus textos. Mais um memorável. beijos
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