Zuleica ia para o hospital, para uma internação que não seria a última, mas a primeira de um processo que antecederia seu desencarne num processo lento e denso, doloroso. Para ela, para todos que a cercavam, para todos que a conheciam. Ela a agarrar-se à esperança que só os doentes graves têm de que serão curados. De que terão dores sanadas e saúde recuperada.
Aquele dia mal se iniciava e a carreguei no colo, os dois pavimentos, descendo a escada até a sala e depois outra, até o carro. Sem fazer força, sem suores, num medo apenas de não lhe oferecer conforto em meus braços durante o trajeto. Não pesava mais que uns 40 quilos, peso que não senti. È esse momento o de lembrança maior, quando me lembro dela já no estado de adoecimento, e embora prefira me lembrar dela em Ubatuba, na praia, a tomar uma cervejinha, ou a passar cera na ardósia da casa, aquela lembrança é mais presente. Ainda assim é melhor que outras de sua via crucis, por sondas alimentares e demais internações. Uma noite, quando ainda podia alimentar-se com as próprias mãos, Vera, sua prima, perguntou, prestes a descer ao café do hospital, se ela queria algo, ao que animadinha responde com a mesma vontade com a qual se agarrava à vida: “Um pãozinho de queijo”, com a voz fraca dos que têm o pulmão em falência, mas os desejos de uma mineirice enraizada, mesmo após décadas fora do torrão. Era a mesma vontade com que havia comido no Natal anterior, seu último Natal, os pastéis que Henriqueta, sua irmã, fez, com o costume da mãe delas, que os preparava sempre no dia do nascimento do Cristo. Zuleica surpreendeu por comer e repetir, quando já não mais tinha quase apetite. E assim agarrava-se a esses pequenos prazeres gastronômicos, talvez os últimos que tinha, até que partiu, mansa e suave, ao encontro do jazigo da família, com uma maquiagem feita pela funerária, na qual se destacava um batom completamente fora da cor e tom dos que usara a vida inteira.
Quando Zé Luiz morreu, depois de meses de uma depressão profunda, em que nada o animava, em que a psicóloga, que frequentou 03 vezes por semana por mais de década, mais metia-lhe medo que certezas a respeito de tudo, cheguei junto com Jair, a um só tempo, no portão do prédio. Apenas nos abraçamos sem dizer nada, cada um vindo acelerado de um lado da cidade. Nos abraçamos fortemente e entramos. Recebidos pelos irmãos do Zé, fomos direto ao quarto onde há pouco ele partira de vez; depois de dias com medo de dormir teria dito: “_Ah, vou dormir... Foda-se!”
E partiu, partiu como um passarinho... Na cama embaixo dele ainda o molhado de urina, ele inerte naquela poça, o corpo já a esfriar... Lavei-o, era a última coisa que podia fazer por ele. Pelo corpo daquele amigo tão querido. O corpo depois foi à funerária, e depois do velório seguiu embalsamado para Belém, onde ele havia nascido, onde estavam pais e irmãos que pouco o tinham visto na última década. Ficaram as lembranças, do jeito, do riso... De como nos dias de transmissão do Oscar, em que ligava para nós a cada intervalo do espetáculo, só para tecer comentários, ansiosos, ansiosíssímos e às vezes exaltados. Da risada dele, de como quando eu comprava algo e ele imediatamente comprava um igual, dizendo entre risos: “Nossa, eu comprei tal coisa, ninguém nunca pensou em comprar um desse modelo!” e riamos a valer... o jeito como repetia frases minhas, como se fossem suas, fazendo cara de bonachão e arrancando-me gargalhadas. Foi em paz!
Rafael foi dormir e não acordou mais... O ataque cardíaco fulminante que muitos invejam... Sem doenças corroendo, sem acidentes traumatizantes, sem falências que deixam à cama sem sentidos, sem memória, simplesmente... Foi! Não deu tempo de se despedir, não deu tempo de dizer nada. O que vale é que o fazia constantemente, falando o quanto gostava, fazendo dedicatórias em livros, reclamando do que achava injusto, fazendo piada das pessoas de posicionamento contrário. Não deu tempo de cumprir a promessa que me fez uma semana antes de uma visita surpresa. Aquele dia, o da promessa, ele estava feliz! Era a primeira vez que dirigia o carro atravessando a cidade. Orgulhoso com a proeza, com a coragem e com o desenvolvimento da aventura. Ainda meio que espero a visita, num sonho talvez... Ficou a lembrança do jeito cômico do excelente ator que era, dos comentários jocosos e ferinos que ele mesmo fazia de si, de suas peças, dos outros... A lembrança do jogo de limpar lareira que compramos pro Sítio de Cunha, de onde ele me trazia pinhões e histórias de caseiros, de caipiras. De vidas...
Os três se foram.
Três dores, três saudades, três pessoas que gostavam de mim, a menos no mundo. E hoje a saudade bateu deste jeito...
Estejam bem... E me aguardem... Eu também vou, acho que vou demorar... Mas vou... Só não me cobrem pontualidade.
Foto: Djair - O infinito, visto através de um dos arcos do Mosteiro dos Jerônimos - Lisboa Portugal.
Requiem - Fauré
Gabriel Fauré (1845 - 1924)
Requiem in D minor